3.1.09

Duro, frio e branco

Primeiro eu:

Sentado no banheiro, estou cansado e minha mente me ensurdece. Tenho os olhos voltados para dentro já há dois dias, dois dias ao contrário, sou paisagem hipertrofiada de mim, sou redundância e já não me agüento mais. Fugo, e é para o chão, esse piso duro e frio e branco de cerâmica.

Segundo eu:

Dezoito quadrados brancos de cerâmica compõem o chão, frio e duro, branco. Não completamente branco, posto que são, ou estão, invadidos por minúsculos pontinhos pretos. Os pontinhos pretos são inúmeros, quase infinitos, seriam infinitos, se eu quisesse, se acreditasse. Na multidão, começo a procurar por alguém.

Terceiro eu:

Na multidão, encontro de perfil uma senhora, já de idade, veste um chapéu ou possui um grande topete, tem ar altivo, provavelmente pelo nariz, que se sobressalta, certamente não pelos olhos, que tenho mais dificuldade em encontrar, um olho não se vê, o outro é formado por um único ponto. Perco e reencontro seu olho a cada instante, de tão pequeno, e o confundo com outro pontos, e o reinvento, me forço a reinventá-lo. Com todos os seus olhos, porém, a senhora, de longe, olha fixamente em minha direção sem jamais piscá-lo. Ainda que a cada vez com um olhar diferente. Agora outro olhar, e me sinto outro

Quarto eu:

completamente estranho ao anterior, e ao anterior, e ao anterior. Já não sou mais redundância, sou especulação.

Quinto eu:

Meu problema é que me entrego demais às especulações. E me perco.

Sexto eu:

Retiro da senhora seu olho e ela agora é só nariz, chapéu ou topete, e talvez alguma boca. Uma imagem deformada, um estranho eufemismo para a alteridade, ou talvez eufemismo de mim mesmo, ora, posso no chão infinito reinventar o universo por inteiro, posso me reinventar, posso nele me esconder, e o que faço (realmente não imaginei chegar a esse ponto e talvez agora deva começar a me preocupar) é fabricar uma senhora de nariz sem olho e talvez boca para que não me veja. Talvez nem me fale. Algum tipo de ode bizarra da solidão. Basta mesmo o nariz, grande, para que respire. Talvez para que me sufoque, mas pode ser apenas piedade minha.

Sétimo eu:

Me passa pela cabeça agora perdê-la. Deve ser fácil. Basta piscar os olhos.

Oitavo eu:

Ainda está lá, nariz, topete, boca. Não sei como, mas sei que é ela. Poderia ser qualquer outra coisa, qualquer outro conjunto de pontos em qualquer outro quadrado de qualquer dos dezoito quadrados que formam este piso de cerâmica, branca, dura, fria, e ainda assim sei que não, que é aquele, é aquela figura, aqueles pontos, ela. Não a perco e não consigo entender como não a perco. Como eu entendo o que é uma coisa, e o que já não é mais, o que é jurisdição do teto, o que é jurisdição do chão, e porque eu não sou o chão nem o teto, e porque aquela senhora não é qualquer outra coisa? Como?

Nono eu:

Talvez eu não entenda.

Décimo eu:

Pisco novamente, agora mais longamente, e sinto o mundo desbotando, como memória esquecida, branca, fria, dura.

Décimo-primeiro eu:

Abro os olhos e procuro, lá não está mais a senhora, insisto com meus olhos que agora a perseguem, e não a encontram, e me desespero, e sinto que posso transformá-la em obsessão, e vejo um senhor, de bigode e que me olha sério, um cachorro com as orelhas levantadas, e vejo um palhaço, nariz de palhaço, boca pintada, fechada, e os perco todos até reencontrar a senhora, longo nariz e topete, sem olhos, agora uma boca maior e orelhas salientes mas é ela, sei que é. Ao seu lado, também de perfil, quase disfarçado por um aspecto sorridente que eu normalmente não reconheceria, estava eu, e era como um espelho, se ao menos fosse reflexo de algo.

Primeiro outro:

Agora me levantei e me pus a andar. Olho novamente para dentro, e já não me vejo mais. Aliás, já não sei quem é. Sei que move-se, segue pela sala e olha pela janela aberta. É dia, e pela rua vejo carros passarem, pedestres, um ou outro, esperando o semáforo. É dia, e é como um filme.

3 Comments:

Blogger Lasevitz said...

Esse pode ser um terceiro capítulo, ou um quarto. Talvez décimo-oitavo, dependendo de como a cabeça se quebrar.

04 janeiro, 2009  
Anonymous Anônimo said...

Não me arrisco a entender, mas achei genial!

07 janeiro, 2009  
Blogger Lídia said...

Não pude conter: existe influência de Dodecaedro aqui, né?

13 fevereiro, 2009  

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