2.3.07

As fotos


Tinha o hábito de querer a felicidade que via nas fotos. Olhava para dentro de sua bolsa de valores morais que carregava consigo desde a infância, ainda que com a displicência de quem os esquece de vez em quando, como que para arrumar espaço para sentimentos mal mastigados. A desordem da bolsa a deixava confusa, e o deslumbre de algum objeto que se assemelhava com a inveja tornou-se demasiado fosco para que fosse levado a sério.
Sim, ela sabia que aquelas pessoas felizes das fotos não eram sempre felizes, que talvez não fossem felizes nem naquele momento da foto, em que parecem felizes. As fotos são construções de realidades, são representações. Uma tentativa humana frustrada de transformar a beleza orgásmica de instantes devorados pelas mandíbulas pouco razoáveis do instante seguinte, trancafiando-os na segurança de uma jaula de papel-cartão. Álbuns de fotografias são zoológicos de instantes, provavelmente presos demais para se reproduzirem em cativeiro. Mas mesmo assim ela queria roubar aquilo, com toda a força do seu ser, cada vez que via um álbum de fotografia, ou mesmo uma só foto, queria para si aquela felicidade, a qualquer preço. Mas sempre sorria, com um sorriso automático demais para ter saído da velha bolsa da infância, e dizia:
- Que bonita! E é lindo esse lugar, onde é?
Estava presa, não importava onde fosse, não importava onde passasse suas férias, estava presa a um lugar. À insatisfação.
Provavelmente não era só essa realidade artificial forjada por instantes trancafiados em fotografias o que a incomodava. Olhava para suas próprias fotografias com olhos velhos, usados, tanto quanto os momentos de que tentava lembrar. Girava seus olhares de um lado para outro de suas próprias fotos, como que se tentasse remover-lhes esse pó que contagia como que por epidemia todos os momentos entulhados nos depósitos pouco conservados de passado que às vezes revisitamos, quase sempre com alguma frustração nostálgica. Sim, era o pó que embaçava as fotos, e incomodava os olhos.
A felicidade que via nas fotos de amigos era de uma limpeza impecável. Ou ao menos, era assim que se sentia. Sentia, pois não sabia descrever bem o sentimento que lhe vinha. Sabia simplesmente que o que via ali era belo, tanto quanto incômodo. Via essas fotos com olhos recém-nascidos, lavados por lágrimas que poderiam até ter de fato caído. Mais do que isso, percebia nesses instantes, trancafiados que estavam para não fugirem para a selva pouco visitável do passado, momentos novos, de presente absoluto, como se tais instantes tivessem nascido e vivido desde sempre em cativeiro. As fotos de felicidade dos outros pareciam mais reais que a memória empoeirada que guardava em algum arquivo de felicidade do cérebro.
Vagava agora por uma daquelas ruas de qualquer beleza turística, transitando de momento em momento como que vendo, um por um, as mortes ainda precoces destes momentos que se vão antes de se transformarem em algo. Ela não sabia definir bem este algo. Fingia orgasmos de felicidade enquanto ouvia frases de outros que nelas se pretendiam eternos. E ela queria acreditar nessa eternidade. Se esforçava, quase sempre em vão. Era jovem, em sua mal resolvida adolescência, mas parecia querer a eternidade dos velhos, que viveram o suficiente para tomar conhecimento de que algumas de suas memórias sobreviveram a décadas de bombardeios de tempo, e ainda vivem, ainda que empoeiradas, bem conservadas no presente.
As férias eram para ela o período do ano reservado para a fabricação de felicidade, e o tempo parecia bombardear essas raras chances de vida real - porque, para ela, não poderia haver nada de real naquele cotidiano repetitivo de cada dia, que não aparecia nos álbuns de fotografia nem nas conversas de bar - de forma impiedosa. Sentia-se angustiada. Jogava no lixo um bom pedaço de realidade por mera incompetência. Não sabia existir.
Passou a última noite de viagem com amigos, em um dos bares famosos da cidade. Havia pedido para que um garçom lhes tirasse uma foto com vista para a paisagem urbana do fundo, que registrava uma torre alta e larga, de um branco meio sujo pelo tempo, e que era monumento turístico da cidade. O garçom lhes pediu para que sorrissem. Ela esticava seus lábios de forma a mostrar parcialmente os dentes, e assim permaneceu, durante os longos cinco segundos entre o flash da câmera, e o esforço sobre-humano do sorriso que abria, espontaneamente, para o desconhecido de avental já meio sujo, de fim de expediente.
Co-autora: Ana Emília Cullen

1 Comments:

Blogger AnaCullen said...

Ficou muito bom! Exatamente o que sentimento que eu queria passar, engraçado que ao ler eu fui tendo idéias para desenvolver alguns trechos. Vou te mandar um e-mail falando sobre eles.
Adorei a bolsa de valores morais, ficou fantástico isso!
Beijos!

03 março, 2007  

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