12.7.07

Galhos de tempo


Recebi a notícia.

Lembro que uma vez, durante uma aula, me falaram a idéia dos arquétipos, esses rabiscos de pessoas no qual podemos encaixar toda a humanidade. Costumo dizer que é o papel do intelectual esse de reduzir as grandes pedras do mundo a pedregulhos. Nas grandes pedras, se tropeça. Já os pedregulhos, esses nós os jogamos nos lagos e poças de água que acontecem de esbarrar com nossos olhares ansiosos por espetáculos. Como bons gozadores que somos, tropeçamos os lagos nos pedregulhos e rimos com seus círculos de água. Por alguns instantes, eles nos fazem acreditar no infinito. Mas dura pouco.

Se a água parada é o tédio, a onda é o fantástico. Daí os pedregulhos.

Para o intelectual, o pedregulho é aquilo que ele pode levantar. É a pedra que estava no meio do caminho mas que ele pode pegar com a ponta dos dedos e, com olhar de voyeur, observar as marcas daquilo que ela derrubou. Seres humanos, formigas ou lagos.

Não se pode estudar uma pedra sem nela tropeçar. Estudar a pedra que está no meio do caminho é ter uma pedra no meio do caminho. Intelectuais não costumam gostar da realidade. Preferem o mundo dos interruptores. Apaga-se a luz para que se acendam os arquétipos. É a saída do cientista, do filósofo e da mente distraída para o medo do fantástico que é também o medo do tédio. Para quê servem as grandes pedras do mundo quando podemos tropeçar nos pedregulhos da nossa mente?

Dizem que toda história contada, por mais torta ou gaguejada que seja, é um prédio de palavras que só pode ser construído - e, porque não, derrubado - com as mãos de oito pessoas. Minto, pessoas não, pedregulhos. Quer dizer, arquétipos. É necessário um Herói para levantar o prédio. Uma Sombra que o cegue. Um Mentor que o faça enxergar sem olhos. Um Arauto para lembrá-lo que entre cada tijolo, existe um cimento repleto de acaso e que o prédio está sujeito a cada ventania que passa. Ou que deixa de passar.

Quero falar do Arauto. O Arauto é o invasor do normal. Arromba portas de casas e de mentes. Para cadeiras, mesas, papéis e idéias, o vendaval é o mesmo. Ou pior. Não é o mesmo. O Arauto é, afinal, o homem que de tanto respirar, deixou de conformar com a idéia de ser mera fábrica de brisas. Passou a soprar. Cansado de levantar as mesmas folhas, começou a caminhar. Viaja o mundo com seus sopros. Vê graça naquilo que vôa sem saber voar. É o que o diverte. Outros preferem trotes telefônicos.

Posto de outra forma. O Arauto é aquele que conta noticias.

Eu estava sentado, estado daquele que não se conforma com o balançar constante e incerto que é o estar de pé. A sala se encontrava repleta de objetos estáticos, ocupados de nada além do seu próprio silêncio peculiar. Meu olhar estava perdido em algum ponto fixo do cenário e eu, em uma de minhas asserções sempre arriscadas a trombarem-se com as vírgulas alheias, estava prestes a admitir que se poderia viver muito bem dentro de um único e impensado quadrado aleatório de olhar. Vivia a glória de ser Deus de um único ponto.

É interessante perceber que ser Deus está acima da curiosidade de se olhar para o lado. Olhar para o lado é perder o controle. O que é o mesmo que descobrir que algo no mundo ainda pode te surpreender. Há dragões depois do ponto.

E foi sentado que recebi a notícia. Não sabia se havia entrado pelo vão da janela ou pela brecha de minhas pálpebras entreabertas, de modo que avancei rapidamente em direção de ambas para fechá-las. A notícia continuava ali, condenando-me a confundir minha ordem das coisas com a coisa bagunçada do que não é meu. Penso que foi algo parecido com o que acontece quando moscas desavisadas passam por cima dos muros que erguemos como trincheiras em uma guerra contra o acaso. Pois que é isso que faz a mosca. Lança granadas de falta de controle sobre nossos projetos arquitetônicos de bagunça planejada. Voa distraidamente e derruba distração na nossa necessidade olhar para algum lugar. Fixo. Forjando nossa onisciência.

Até a chegada da próxima mosca.

Eu, atordoado com a arrogância da invasão que não bate portas, comecei a andar. Saí pelas ruas, tomando banho de sol, chuva e de acaso. Trazia no bolso a notícia, que ainda tinha dificuldades para se acomodar com
as poltronas difíceis do resto do meu mundo de notícias velhas de revistas do ano passado. Via de um lado da calçada uma mulher, já em seus cinqüenta anos, que carregava nas mãos seus sacos de compras. Caminhava com dificuldade e não percebia que um dos potes de conserva que trazia, mal acomodado, flertava com o chão a cada passo. Do outro lado da rua, uma jovem estava sentada com o olhar de quem olha para o tempo esperado mais do que para o espaço. O olhar passava intacto pelos carros que o atropelava cruelmente a cada segundo. As mãos partiam galhos de árvores caídos, partindo com eles alguns galhos de tempo.

Quanto mais galhos de tempo você quebra, mais você se aproxima de um mundo incerto e sem galhos. Se ela pudesse, quebraria o futuro. Quem não tem o futuro, usa galhos. Com algum esforço, você pode até disfarçá-los de solução.

Continuei andando, e o chão me levou ao encontro de um pedregulho que comecei a chutar, sem pensar. Arrastei-o comigo por diversos quarteirões. Só parei quando cheguei no futuro.