19.12.08

Sobre a torneira


E se eu te escrevesse agora com palavras de pia? Se eu saltasse de cima da ponte galáctica de poeira cósmica, do viaduto que cruza Orion, de um lado a outro, para debaixo do teto, branco, piramidal que me esconde em dias nublados, ou azuis, ou roxeados, ou quando foge, ou se parece noite. E se eu tropeçasse ao invés de escrever? Palavras? O vento. O vento, O vento que já tanto te soprei, instituição que contratei para te arremessar poesia, quilômetros e quilômetros, vento como meio de transporte para a metáfora, serviço postal dos telegramas cósmicos e dos intergalácticos, elo de conexão entre eu e talvez o teu rosto, tu e talvez o meu rosto, departamento nacional do trânsito da paixão e seus calores, igreja da compressão do espaço e implosão da matéria que não importa para a humanidade, ou seja nós mesmos, ou seja, a humanidade, eu e você no altar orando para nós mesmos e pelo sacrifício de nós mesmos para e por nós mesmos, revolucionário dos estudos cartográficos mundiais, redesenhista do traçado Brasília-Goiânia, não mais hifenizado, não mais fronteira, não mais metrópole, não mais sertanejo, não menos, nem Brasília, Planalto, Central, BR-, Anápolis, BR-, Goiânia, nenhum aonde.
— Uma passagem, por favor.
Esse mundo, essa coisa, essa hipérbole de nós mesmos, é tão feito de palavras de pia, tanto de pia quanto eu, quanto tu (imagino). E quando digo de pia, quero dizer de janelas mais ou menos emperradas, de escrivaninha de madeira descascada, pia, BR-253, de televisões em salas ao lado, Charlie Sheen esboçando em voz alta uma filosofia da vida prática, pia, minha porta fechada e que antes deixei encostada por simpatia pelo senhor da sala ao lado, ouvindo Charlie Sheen, pia, fechada ou aberta.
— Para onde senhor?
Esse mundo, essa coisa, essa metonímia de nós mesmos, e que decidiu sem maiores deliberações, ou representações democráticas, ou pressões partidárias, deste lado um poeta, daquele um prosador, do outro um senhor calado, do outro uma pia, decidiu univocamente (e com plena aceitação do mundo, nós mesmos), que a chuva te leva pedaços sinestesiados de mim e que o vento, o vento, o vento me traz teus sussurros agarrados a folhas de outono, e parece agora que, assim, portanto, logo, que a chuva não me molha se eu não me cuidar e não fosse o heroísmo da varanda do primeiro andar do prédio verde do bloco F, parece que eu não poderia ter me resfriado, ainda mais com o vento, e parece que não fugi covardemente da poesia, e que não me entreguei ao primeiro abrigo que encontrei, que não há prostituição atmosférica e, logo, que não há pia. Disparate.  
— Não para Goiânia.
A poesia torna o dia de hoje impossível. Indizível.
— Senhor, para onde?
Não. Um homem não pode se dividir assim. Indizível. Impossível.
Hoje.
Hoje acordei de um longo sonho, tentei me lembrar dele, de partes dele, do que me restava dele na mente, uma diretora de escola, travesti, eu preso, havia um regulamento. Senti a garganta seca, o mau hálito na boca. Tentei voltar ao sonho, mas não consegui, e podia ser mesmo a secura, e me levantei. No banheiro, o chão era frio e me arrependi dos pés descalços. Como estavam distantes os chinelos, optei pela pia, e pela água, e pelo chão duro, e pelo frio. A torneira gotejava. Sempre gotejava. Estava gotejando ontem, gotejava quando fui dormir, e teria de estar gotejando hoje de manhã, a não ser que se secasse a água de vez a água do mundo, de vez esvaziada pela minha torneira, a água do mundo no meu ralo. O som das gotas caindo, no ralo da pia, ecoavam pelo banheiro, e invadiam o quarto, e não me deixavam dormir, e quando deixavam, serviam de percussão aos meus sonhos, ploc, ploc, ploc. Talvez eu tivesse sonhado com isso mesmo, eu preso, a diretora, e o ralo como trilha sonora daquilo que sonho. Ploc, ploc, ploc, abri a torneira e enchi o rosto de água, fechei a torneira e já não havia mais sonho, e a diretora, travesti, e eu preso, jamais passariam novamente pela minha cabeça, e o ploc, ploc, ploc do ralo da pia voltariam a ser, não mais, do que trilha sonora para a minha própria vida, realidade, meu dia. Hoje.
Impossível, indizível.
— Não para Brasília.
Para ti, ou para nós, decerto para nós, nunca houve hoje. Nos situarmos no tempo, no ontem, na semana, na outra, nos três ponteiros, o pequeno, o grande, o maior que se mexe, de novo, de novo, no depois ou no agora (até no agora), parece absurdo. Eu flutuo, pairo, o mundo lá embaixo, não só esse mundo-espaço, esse mundo-coisa, que minha flutuação vai além do tridimensional, latitude, longitude, não, olho para baixo e vejo minutos, olho, e vejo a madrugada, quase manhã, Orion amando Eos, olho, e vejo leite, uma caixa de leite, ao fundo de uma geladeira, a validade se expirando, lentamente, e vejo pessoas, expirando, e vejo a chuva chegando, e passando, e mesmo o vento, a tal instituição literária, mesmo o vento eu vejo de cima, junto com a chuva, que cai contra mim e ao avesso de mim. Nada me vê. Sou intransitável. De mim no mundo, esse mundo-coisa-instante de que te falo, só se vê sombra, minha sombra projetada por um Sol sabe-se lá escondido aonde, minha sombra projetada sobre o tudo e o todo, e sobre você, lá embaixo, debaixo de mim, e se antes você (ao menos) me visse por um binóculo, uma luneta, e que fosse côncava demais, ou convexa demais, e que fosse empoeirada, que fosse até mesmo um espelho, que fosse, mas não,
— não sei. Qualquer lugar.
pois que de mim o que via era mesmo a sombra, projetada por um Sol sabe-se lá aonde escondido, essa exibição do meu negativo sobre o mundo-coisa, sobre o mundo-instante, ou nem negativo, não bastava revelar-me, inverter-me, fazer um blow up imenso de mim mesmo e ter um eu fotografado em detalhe. Não, sombras não são isso. Nem são as sombras partes de um todo, meu todo, minha parte. Nem minha metáfora, não, nem um eu figurado, meta-narrativa de mim, não. Queria dizer que talvez pudesse ser, talvez fosse meu eclipse, eu eclipsado, pelo Sol, pela Lua, por um pássaro, um poste, melhor ainda um poste, ou prédio, coisas que costumam e que gostam de nos eclipsar no Dia-a-Dia. Dia-a-Dia. Dia, a, Dia. Que expressão! Não. O eclipse era do próprio Sol, eu na frente do Sol, tapando, me esfregando sobre o Sol. E você, lá embaixo, contemplava meu eu em branco, uma grande folha de eu, branca, preta, pronta para você, e para que você nela escrevesse aquilo que quisesse. E que me entendesse, como quisesse.
— Temos um ônibus saindo em meia hora (instante) para São Paulo (coisa), você quer?
Latitude, longitude, impossível, indizível,
— um homem não pode se dividir assim. A realidade e a poesia são demais para um só homem. Nem Brasília, nem Goiânia. Não há o que dizer. Não há 
Impossível, não diga!
— Tem algum banheiro por aqui?
Disparate.
Entrei, e o banheiro era sujo o bastante, nem pouco, nem demais, e a torneira, entreaberta, pingava, ploc, ploc, ploc, e eu mal podia escutar os ruídos da rodoviária, ensurdecedora, quem diria. Ainda teria de esperar por vinte minutos antes de entrar no ônibus e não fazia idéia, idéia, de como passá-los, idéia, parecia absurdo, vinte minutos, olhei para o relógio, o ponteiro pequeno apontava o seis, o grande, o quarenta e cinco, enquanto o terceiro se movia mais rapidamente, quatorze, quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois, e parou.
(*) Segundo capítulo para livro. Seqüência (não necessariamente linear) de "18:45".

3 Comments:

Blogger Unknown said...

R.,

não achei que seria tão difícil ler novamente.


um balde, quase uma panela, capturador de plocs,

J.

21 dezembro, 2008  
Blogger Sargento Azul said...

Achei no google, procurando sobre torneiras.O nome da parte que gira pra abrir...Acho que já nem importa mais depois do que li.Está lindo.

05 janeiro, 2009  
Anonymous Anônimo said...

Gota a gota


Quatro paredes, uma porta.
Em algumas culturas o dentro não tem nome
Estou no ventre do inominável
Ensaio alguns pensamentos
Um som me distrai... Me distrai
Flores desenhadas na parede não me inspiram
Sinto frio, um vento que venta curto me apressa.
Um som metricamente me distrai
Quero descrevê-lo, não sou capaz.
A água viva quer se libertar
Encontra no escuro uma fresta
E de gota em gota realiza a fuga
Pobre criatura não encontra abrigo
Se quebra ao tocar violentamente o cimento frio
Esse som, que me chama, que me engana.
Gota a gota que se quebra ao se estatelar
No insensível cimento frio,
Dou meia volta no gira-gira da torneira
e fim de festa.

16 fevereiro, 2009  

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