8.3.07

O Berro do Olho

I
O som da boate era ensurdecedor. Os dois já estavam lá há quase duas horas, e a sala transbordava de realidade própria criada pela ditadura de seu próprio som. Como em um berro, aquela sala escura e apertada, em que mal cabiam as pouco mais de quarenta pessoas presentes, também era um ato de guerra contra o ruído alheio. A boate, assim como o berro, vê no ruído a idéia de interferência, ou, mais do que isso, de estilhaçamento de algo que deve ser pleno, tão total quanto o silêncio. São a tentativa de invenção de uma jaula de som, colonização totalitária do ouvido. Resta ao ruído o grito de fuga. Ato desesperado em contra-berro.
II
Era um beijo o que lhes acontecia. Ele gostava de lembrar de que haviam dado seu primeiro beijo em cima de um bueiro, na noite de uma das ruas movimentadas da cidade. Tinha uma concepção própria bastante peculiar de sua vida. Via-se como um grande rascunho para os rolos de papel-biográfico que usava de remo para suas conversas do dia a dia. Não via na vida muito mais do que uma longa e exaustiva feira de escambo de contos e causos, dessas em que vamos fazer compras em dias de calor, debaixo de um Sol forte que certamente incomodaria sua pele exageradamente branca, pouco adaptada ao verão brasileiro. A história do bueiro era bastante boa, e tinha bom preço de mercado. Assim, se havia agora um segundo beijo, era porque sabia que a eternidade do primeiro beijo é sempre sombra de uma infinitude de beijos seguintes. O mercado de conversas era exigente, e o endividava com o resto de sua vida.
III
Ele levara alguns anos antes de conseguir compreender a essência da idéia da boate. Antes, ainda em sua meia-adolescência, ele via naquele monte de caixas de som empilhadas – que espalhavam, por uma sala pequena e escura, músicas velhas com o volume-alto daqueles que não tem outro argumento que não o próprio berro – uma espécie de monumento ao desespero. As danças desordenadas lhe lembravam ataques de histeria, do tipo daqueles que lia nos livros de psicologia, e associava o som absurdo a uma tentativa quase psicótica de transformarem o espaço, o próprio ar ao seu redor, em algo tão caótico quanto o que viam por dentro de si. A imagem que lhe vinha era a de uma fraternidade humana do caos que tentava ritualmente virar-se do avesso.
IV
Ainda se beijavam. Tinha o hábito de abrir os olhos durante o beijo. Havia passado por uma adolescência de poucos amores, e as diversas paixões platônicas, com que preencheu suas garrafas descartáveis de poesia nesse período, só serviram para fazer crescer dentro de si uma imagem de corpo humano que flutuava demasiadamente sobre a sua própria realidade para ser alcançado por seus dedos exageradamente sólidos. O toque humano foi uma fábula a qual ele não pertenceu até seu pouco mais de meados de adolescência, surpreendido por uma garota seis anos mais velha, estudante de história no interior de Goiás, e que jamais veria de novo. O corpo era para ele aquele pássaro raro, que não se vê a não ser ao longe, em vôos fortuitos que obrigam os olhos a percorrerem maratonas de céus e nuvens para o alcançarem em sua eterna viagem para além do real. Bom, talvez não além do real. O pássaro raro é para o grande explorador o único copo de realidade que ele irá saborear em sua vida. Aliás, provavelmente ficaria deveras bêbado se pudesse pegá-lo nas próprias mãos.
Ele não hesitou em abrir os olhos durante os poucos segundos de seu primeiro beijo. Seus olhos pareciam querer olhar por entre os poros de sua amante, como se a magia daquele momento pudesse estar escondida ou perdida por debaixo dos escombros da pele humana. Agora, anos depois, ainda fazia o mesmo. Beijava-a, mas seus olhos entreabertos ainda esbarravam no labirinto dos poros humanos.
V
Os olhos dela se abriram. O barulho interminável da boate a incomodava, e viu-se subitamente contagiada pelo medo pouco razoável de que já não tinha mais a certeza de quem estava beijando. Era invadida por uma claustrofobia estranha, de quem não se sentia mais capaz de fugir; de fugir daquela música, que já há muito havia vencido aos esforçados gritos alheios, tornando roucas as vozes que ainda se aventuravam em surtos de heroísmo ingênuo; de fugir daquela sala, em que os passos se confundiam com os esbarrões, e os esbarrões já não sabiam se estavam a esbarrar ou a pisotear enquanto a porta de saída se perdia no meio da mistura que já não possibilitava distinção entre multidão e paredes; ou mesmo, de fugir de seus próprios olhos fechados, que ao menos a poupavam de redescobrir uma realidade da qual sua memória já pouco se lembrava. A verdade era que não sabia bem qual era o seu medo, e de fato achou-o tolo demais para dar-lhe qualquer real importância em princípio, ao ponto de resolver cerrar ainda mais os olhos que, por mais meia hora, recusou-se terminantemente a abrir. A cegueira voluntária transformava-se em troféu e talvez até tivesse acreditado, por um daqueles momentos que os relâmpagos de lógica dos nossos cérebros ainda não haviam tido tempo de atingir, poder exibi-lo algum dia em favor de sua própria glória. Juntaria esta a muitas outras já esquecidas ou pouco lembradas em sua empoeirada sala de troféus, que agora começava a ocupar um espaço pouco razoável de sua consciência.
VI
As grandes batalhas costumam se esquecer de suas origens tolas e seus mortos geralmente acabam enterrados em valas comuns, junto com suas razões fúteis. A guerra é uma fábrica de glórias que exala por suas chaminés seus resíduos poluentes sob a forma de derrotas. E é isso o que fica. Embalagens recicláveis de glória de plástico e alguns céus poluídos demais para que os olhos dos vivos possam transpor a fumaça da derrota e tentar ver alguma razão de ser nas poucas estrelas que talvez ainda insistam em brilhar, na esperança vaga de serem vistas.
A decisão de manter-se na escuridão dos olhos fechados por mais meia hora transformou a tolice original do medo de abri-los em uma grande batalha sem razões. Já não se lembrava mais daquilo que mantinha seus olhos fechados. O medo, mais do que as idéias, envelhece. Entedia-se com as idéias que o mantém preso. Passa a acreditar que pode viver sem elas. Olha-se no espelho, e então, já não é mais um medo que se vê. É um dogma. Pois que o medo fica. As idéias, se esquecem.
VII
Sim, os olhos dela se abriram. Queria olhar ao redor, reconhecer seu mundo, maravilhar-se com a fantástica paisagem do mesmo-de-antes. Não conseguiu. Seus olhos trombaram com os olhos da frente, dele, incrivelmente abertos. Era a primeira vez em que se olhavam nos olhos. Provavelmente, compartilharam um ou outro instante em que pensaram em forjar um olhar de lado, desses que buscam o conforto das paisagens vazias. O olhar é o fardo da existência. Beijavam-se até então sem que trocassem olhares, como quem tenta não admitir a existência do outro. Não estavam lá, e flutuavam na leveza fantástica do mundo fabuloso dos cegos. Seus olhos, porém, estavam agora demasiadamente próximos. A paisagem do olhar do outro era total. Já não sabiam mais há quanto tempo se olhavam e, provavelmente, pela primeira vez, pareciam acostumar-se com o peso da existência. E isso já não importava. Seus olhos berravam. Alto, talvez demais para que pudessem ouvir a música que continuou tocando até as primeiras horas da manhã, quando a chegada do silêncio parece ter passado despercebida pelas pálpebras desatentas de alguns.

1 Comments:

Blogger Alex Sugamosto said...

Saudações RSL! Deve lembrar de mim com as alcunhas de Meazza ou então Alexandre Sugamosto!!! hahaha, q q anda inventando figurão? Quando vamos voltar à trabalhar juntos?

anota meu MSN: sugamosto@hotmail.com

17 abril, 2007  

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