12.1.09

Víque através

Rezando, de cara a la pared, se hunde la ciudad.

Hunde, como em afundar? Afundaria minha cara contra a parede se fosse possível, ou se houvesse parede e não janela, se fosse parede e não montanha mato alto casa latifúndio casa cabras montanha casa, é engraçado até, isso de olhar o mundo correr. Fugir. Foge mundo. De mim, foge! Foge como se fosse um filme fugindo, uma cena atrás da outra, o elevador fugindo de Nicolas Cage fugindo de Merryl Streep fugindo de Nicolas Cage assim como o agora fugiu do agora a pouco, e é tudo fuga, covardia, cinema, tempo e  janela, todos, nenhum existiria sem a covardia da fuga, isso de já não ser mais. Hunde, como em fundir? Outra cabra mato cabra. Víque recusa a janela, olha para o banco do lado, o teto, provavelmente ultrapassou o teto e corre com os olhos em direção ao céu que não foge nem jamais fugirá, essa coisa absurdamente imóvel que talvez seja mesmo o que é Víque, essa paralisia metódica, ambiciosa, admito, danou-se afinal com o teto, mas ainda assim. Para o céu. Para mim. Agora olha para mim, o olhar sério, demais talvez, e não acho que haveria razão para isso agora, ao menos que eu me lembre não haveria e de modo então que talvez não seja um olhar sério, talvez um olhar contundente, sereno, fugaz, diabos, Víque, diabos, o que você é afinal? Hunde, como en hundir. O ônibus segue atravessando uma estranha zona rural onde nada parece ser um lugar só, os horizontes são confusos demais, casas cabras montanhas casas não parecem começar onde termina a outra, não terminam onde começa a outra, se misturam demais, se fundem demais, e é tudo muito impressionista, não há contornos, não há fronteiras, não há. Claro, há sempre a geopolítica e a cartografia no mundo servindo ao desmanche de qualquer arte que quaisquer olhos (meus) possam atribuir a qualquer artista (Deus?) absurdo (ainda eu, em última instância). Há, também sempre, Víque para lembrar, não sei quando abandonou o teto e o céu, acho que foi por um instante e záz, placa de trânsito e olho na placa, para lembrar que passávamos da fronteira, e que havia fronteira, linha imaginária entre um mato e outro, um daqui pra lá, e um daqui pra cá, salto fantástico que para Víque significava prerrogativa para que para trás ficasse o português, daqui pra lá, a fala forçosa e golpeada do castelhano, daqui pra cá. Em seu olhar Víque trazia certa glória vingativa, essa inversão de natividade, esse avesso súbito de nós e agora Víque mão segurando o queixo aceitando a janela largava o céu e se borrava de vez aos meus olhos, e ouvidos, e palavras, também borradas. Hunde, como em borradas. Não enxergava o céu de Víque, sou incapaz de compreender a janela de Víque, droga, quase não enxergo Víque, agora bastante compenetrada, matocabrmatomorrvíquecabraato, sem começo, sem fim, sem meio, e não sei se falo, se me arrisco, se expulso Víque de sua janela rumo a mim, provavelmente tão borrado quanto a janela, ou mesmo, se Víque quer ser expulsa, se Víque quer minha palavra, se quer que eu emita, crie sons, Víque posso até berrar, Víque, se quiser. Me vem a vontade de estalar os dedos, um dedo contra o outro dedo, esse quase monossílabo que não chega a precisar caber em letras e que me abriga (não, não me abriga) de tradutores, me abriga de intérpretes, me abriga, leitor, de ti. Estalo e o estalo é o primeiro som nesse dia que me faz sentido, tlac, tlac, tlac está no dicionário, letra tlac, primeira letra e última, tlac, um alfabeto inteiro, tlac, essa palmada na atenção, pancada na paisagem, a violência que a todo verbo conjuga, e Víque me olha, relutante com o canto do olho, a boca talvez pudesse ter sorrido, talvez. Hunde, como em afundar. E olho nos olhos de Víque. E não sei se Víque olhava em meus olhos. Talvez olhasse através dos meus olhos, como olhava antes, através do teto, e depois, através da janela. Não saberia então dizer o que ela veria. O que havia afinal através? O que há antes de mim? Víque, que não se importa, através olhava para as costas (devo dizer barriga) do banco vazio a sua frente. Vazio não completamente, ocupado que era, sim, por pernas que se espreguiçavam e que prolongavam o corpo que ocupava o banco (barriga, costas) ao lado, e sei que havia um fim de pé que tocava a janela, tocava, não atravessava, não assistia, um meio de cintura que se permitia visível entre um banco e outro banco, meio princípio de jeans, meio final de moletom, azul, escuro, e sei da mão, ligeiramente peluda e dependurada, despencando pelo encosto de braço que dava para o corredor. O que havia afinal através? Um senhor de idade, um jovem, cansado, era uma longa jornada de trabalho, aonde, mineração, de carvão, ah, sim, um trabalho cansativo, sim, fadigante, perturba a saúde, minhas mãos, pretas e é o carvão, que sobe pelos braços, sobe pelos ombros, alcança pescoço boca e nariz, trata-se de um senhor completamente coberto de carvão, uma sombra deitada e que viaja a minha frente, carvão sobre os olhos e ele já não enxerga, embriagado de si próprio, nem a janela, nem o mato, nem as cabras, o sol que começa a se pôr, as costas (longe demais, para mim, lejos, muy lejos) do banco da frente, o de trás (costas, barriga, intestino já enjoado, essa viagem que não acaba, que hunde, como em enjoar), nem o teto, o céu, nem Víque, nem através, nem depois, talvez antes, olhos virados para dentro, é o que lhe resta. Ele se move, senta-se e, no chão do corredor agora o sol projeta sua sombra, sombra da sombra. Talvez sejam exatamente iguais, e então não seria sombra, projeção, seria espelho, realidade, carvão do carvão, e já não se poderia mais dizer quem é espelho de quem, o que é o um do outro, seria sombra enfim em glória, sombra enfim não como projeção, sombra como tradução. Penso em perguntar-lhe. Hesito, penso que seria absurdo perguntar-lhe, moço, carvão, afinal, qual é você? Qual ao invés de quem, está aí toda a diferença. Víque novamente observa a janela, através, cabra cabra mato mato mato cerca, e o sol que persiste, que não foge, covarde como os outros, que fica simplesmente, como se olhasse, de volta, através. Hunde, como em... Noto que Víque dorme, cabeça encostada contra a janela, quase incendiada pelo sol, dorme, apesar de tudo, de mim, cabeça encostada contra mim, quase incendiada por mim, dorme. E penso que não lhe basto. Estranho afinal, Víque não estava cansada, Víque havia dormido bem antes da viagem, Víque ria de minhas piadas, Víque ria através da janela. Mas dorme e agora noto que enxergo melhor, o rosto amarelado e o cabelo liso caído, essa franja reta pela testa, os dentes que se sobressaem, um mais, outro menos, o ar que entra pelo nariz, através, o ar que sai. Avermelhada pelo sol, Víque já é quase poema, quase palavras, posso quase dizer, Ví-que, se o momento pelo menos durar mais, se pelo menos houver tempo, mais tempo, e as palavras se sedimentem e, quietas, imóveis, caladas, possam ser ouvidas, e penso na máquina fotográfica, que tiro do bolso e olho, através de sua lente, Víque, a boca caída de Víque (o ar que sai agora pela boca, essa quase palavra, esse quase monossílabo, esse quase estalo, esse diálogo concreto sem língua, tradutores, dicionários!), a janela, mato mato mato mato, o sol sempre lá, olho através de sua lente. E disparo. Vem uma fotografia tremida, uma mistura de Víque com mato, de mato com sol, de sol com janela. E disparo. Outra fotografia, a mistura agora também é outra, a boca de Víque engole uma cabra, que é pedaço do estofamento do banco da frente, a franja pende sobre o sol e o amarra, e tudo se borra, hunde como em borrar, e nada se vê, nada, está tudo ali, a minha frente, posso (quase) tocá-los, são quase palavras, seriam. E disparo, os dedos firmes sobre a câmera, o corpo preso ao banco, firmado pelo cotovelo sobre o encosto da cabeça. E já não é mais Víque, e já não há janela, a franja, reta, já não pende mais sobre a testa, já não há mais cabras sobre gramados esverdeados delineando a estrada, e já não há sono, ou talvez haja, e já não se fala portugês, castelhano, diabos, Víque, diabos, que raio de língua é essa, que raio? Hunde, como en hundir. O sol enfim termina de se pôr. Afinal também foge, como o mato, como as cabras. Do senhor do banco da frente, já não há mais a sombra no chão do corredor, resta a manga do moletom azul, escuro mas azul, apoiada na braçadeira do banco, sem sombra, sem espelho, sem costas ou cabeça, somente uma manga. Víque, acordada, já não vê através da janela. O ar lhe entra novamente pelo nariz, e seus olhos olham nos meus. Ou através. Antes. O que há, afinal, antes de mim? E o que haverá depois?


(*) Terceiro capítulo para livro, que atrasou e virou quarto capítulo. Seqüência (não necessariamente linear) de "Duro, frio e branco", ainda que seqüência não se note nenhuma. 

3.1.09

Duro, frio e branco

Primeiro eu:

Sentado no banheiro, estou cansado e minha mente me ensurdece. Tenho os olhos voltados para dentro já há dois dias, dois dias ao contrário, sou paisagem hipertrofiada de mim, sou redundância e já não me agüento mais. Fugo, e é para o chão, esse piso duro e frio e branco de cerâmica.

Segundo eu:

Dezoito quadrados brancos de cerâmica compõem o chão, frio e duro, branco. Não completamente branco, posto que são, ou estão, invadidos por minúsculos pontinhos pretos. Os pontinhos pretos são inúmeros, quase infinitos, seriam infinitos, se eu quisesse, se acreditasse. Na multidão, começo a procurar por alguém.

Terceiro eu:

Na multidão, encontro de perfil uma senhora, já de idade, veste um chapéu ou possui um grande topete, tem ar altivo, provavelmente pelo nariz, que se sobressalta, certamente não pelos olhos, que tenho mais dificuldade em encontrar, um olho não se vê, o outro é formado por um único ponto. Perco e reencontro seu olho a cada instante, de tão pequeno, e o confundo com outro pontos, e o reinvento, me forço a reinventá-lo. Com todos os seus olhos, porém, a senhora, de longe, olha fixamente em minha direção sem jamais piscá-lo. Ainda que a cada vez com um olhar diferente. Agora outro olhar, e me sinto outro

Quarto eu:

completamente estranho ao anterior, e ao anterior, e ao anterior. Já não sou mais redundância, sou especulação.

Quinto eu:

Meu problema é que me entrego demais às especulações. E me perco.

Sexto eu:

Retiro da senhora seu olho e ela agora é só nariz, chapéu ou topete, e talvez alguma boca. Uma imagem deformada, um estranho eufemismo para a alteridade, ou talvez eufemismo de mim mesmo, ora, posso no chão infinito reinventar o universo por inteiro, posso me reinventar, posso nele me esconder, e o que faço (realmente não imaginei chegar a esse ponto e talvez agora deva começar a me preocupar) é fabricar uma senhora de nariz sem olho e talvez boca para que não me veja. Talvez nem me fale. Algum tipo de ode bizarra da solidão. Basta mesmo o nariz, grande, para que respire. Talvez para que me sufoque, mas pode ser apenas piedade minha.

Sétimo eu:

Me passa pela cabeça agora perdê-la. Deve ser fácil. Basta piscar os olhos.

Oitavo eu:

Ainda está lá, nariz, topete, boca. Não sei como, mas sei que é ela. Poderia ser qualquer outra coisa, qualquer outro conjunto de pontos em qualquer outro quadrado de qualquer dos dezoito quadrados que formam este piso de cerâmica, branca, dura, fria, e ainda assim sei que não, que é aquele, é aquela figura, aqueles pontos, ela. Não a perco e não consigo entender como não a perco. Como eu entendo o que é uma coisa, e o que já não é mais, o que é jurisdição do teto, o que é jurisdição do chão, e porque eu não sou o chão nem o teto, e porque aquela senhora não é qualquer outra coisa? Como?

Nono eu:

Talvez eu não entenda.

Décimo eu:

Pisco novamente, agora mais longamente, e sinto o mundo desbotando, como memória esquecida, branca, fria, dura.

Décimo-primeiro eu:

Abro os olhos e procuro, lá não está mais a senhora, insisto com meus olhos que agora a perseguem, e não a encontram, e me desespero, e sinto que posso transformá-la em obsessão, e vejo um senhor, de bigode e que me olha sério, um cachorro com as orelhas levantadas, e vejo um palhaço, nariz de palhaço, boca pintada, fechada, e os perco todos até reencontrar a senhora, longo nariz e topete, sem olhos, agora uma boca maior e orelhas salientes mas é ela, sei que é. Ao seu lado, também de perfil, quase disfarçado por um aspecto sorridente que eu normalmente não reconheceria, estava eu, e era como um espelho, se ao menos fosse reflexo de algo.

Primeiro outro:

Agora me levantei e me pus a andar. Olho novamente para dentro, e já não me vejo mais. Aliás, já não sei quem é. Sei que move-se, segue pela sala e olha pela janela aberta. É dia, e pela rua vejo carros passarem, pedestres, um ou outro, esperando o semáforo. É dia, e é como um filme.