23.10.08

A chuva ou o que se vê entre pessoas e um toldo verde

"Vos no elegis la lluvia que te va a calar hasta los huesos quando salís de un concierto".

Tem essa figura que me atormenta hoje já a horas, um casal ou seriam talvez só amigos, não sei, estão de mãos dadas, pressuponho que sejam um casal, um casal e um toldo, desses verdes de padaria em que não se entra para comprar pão pois nem se sabe que a padaria está lá, o cheiro do pão não se desprende e flutua com o ar àquela hora da tarde e de qualquer forma, só estão ali pelo toldo. E a chuva. Que chove. As pessoas que andavam calmas, lentamente pela praça - agora vejam só que percebo que a tal imagem se dá perto da Praça da Sé, que a chuva também molha o Viaduto do Chá e os chafarizes que bom, sempre molhados, chovem para cima e para baixo em conformismo - agora mudam de passo, e se apressam e correm como se todos estivessem atrasados ou se a chuva molhasse os minutos e agora, com vinte e cinco úmidos minutos, mal dá para fazer seis ou sete. Mas isso eu até entendo, e perdôo, que parece que é isso que as pessoas fazem agora, nem que se perdoe com processo na justiça e indenização milionária e que em última instância seja culpa do sistema, mas perdoai-vos, eles não sabem o que fazem e agora tá ali o tempo todo molhado. Não, eles eu não culpo. Culpo os outros que já estavam apressados - ali o seu Silveira correndo com a valise preta de couro nas mãos de quase sempre, cena grotesca, o Silveira e a poça dágua, a água voando, o Silveira e as gotas dágua voando, agora eles se encontram, gotas dágua e um pouco de barro nas calças de veludo do Silveira e agora o pássaro voando assutado -, os que já estavam apressados e que agora pararam, um paradoxo, pararam, e entraram nos mercados, ali na venda de sorvetes - o Silveira pediu um de morango e baunilha agora, está se sentando mas não pegou o trocado -, outro na lotérica, não ganhou, nem apostou, tem um ali que vinha quatro, cinco passos para cada dois ou três chãos, já estava prestes a decolar, ganhando altura, o nariz embicando para o céu, e aí foi a gota dágua cair no nariz embicado que desequilibrou a coisa e que sete mariposas passaram naquele instante formando uma forma geométrica absolutamente revolucionária para as pessoas que se importam ou são formas geométricas, e que não posso descrever porque o senhor do vôo abortado preferiu o chão, e depois a padaria aqui atrás do nosso casal, ou talvez tenha simplesmente adotado o toldo verde.

E a rua enfim ficou vazia.

Parece que agora sou eu quem tem que escrever sobre isso. Bom, o que posso falar do toldo verde é isso, que está manchado, ali quase na ponta esquerda tem um buraco de onde agora a chuva se cachoeira, agrupamento de gotas este que chocou deveras os poucos focos de resistência da secura local que ainda lá restavam, e na outra ponta tem uma beira de toldo que costuma passar o tempo, quando não colhe esses derramamentos esporádicos de céu, segurando folhas secas que se jogam de quando em quando de uma árvore de lá de cima que de vez em quando caíam e era de tanto bater e se esfolar contra o toldo azul escuro do quinto andar.

Dizem aliás que uma imaginação absurda e ainda inexistente desse lado de cá do universo, quando fosse juntar esses quandos de folhas secas caindo com outros quandos duas semanas depois de outra folha seca caindo, e assim por diante de quando em quando, teria uma percussão absolutamente aleatória de sons que se encaixariam em algumas músicas do segundo álbum do Velvet Underground, principalmente a dois e a sete.

Claro que agora são folhas molhadas.

Debaixo do toldo, tem duas pessoas. O outro senhor definitivamente preferiu a padaria e os pães da padaria, e o pacote marrom papel que faz barulho de padaria.

Agora um guarda-chuva cobre as duas pessoas e não posso mais vê-las - sim, às vejo de cima, entre o toldo e as duas pessoas ou, agora, entre o toldo e o guarda-chuva. Imagino que esteja dependurado no teto do toldo, suspenso por algum tipo de corda ou algum gancho despropositado que me serviu de apoio, demonstrando uma força descomunal para um toldo que, lembrem, já estava parcialmente rasgado.

Vejo mãos se chacoalhando para os dois lados. De um lado, com uma manga branca listrada, camisa social e mãos peludas, do outro manga de moletom verde claro, pele mais escura e menos agitada e, mas agora desce de volta e já não a vejo. Suspeito que ainda sejam duas pessoas.

A chuva cai mais forte. Agora são folhas despedaçadas. 

Estou nesse momento planando sobre a rua terminantemente vazia. Ao longe uma padaria e um toldo verde e um casal que agora vem correndo na minha direção. Nas mãos um guarda-chuva, e balança de um lado para o outro. A água entra por vários furos e chove uma chuva única e personalizada, com gotas mais grossas do que o normal, mas que caem mais lentamente, em lenta câmera - vejo meu reflexo em uma delas, estou acenando, a gota me acena de volta, eu de novo, agora não mais - dando tempo para que o cérebro perceba a primeira, no ombro, agora a segunda, na cabeça, escorrendo pelos fios de cabelo e indo de encontro com a outra do ombro, agora outra por detrás da orelha do outro lado. Verdadeiro conta-gotas imaginário, uma dessas maravilhas da mente. Daqui a trinta segundos já serão dezesseis gotas. Não chuva. Gotas.

Afinal, é a contagem que separa uma da outra. Sincronia perfeita de eu com nuvem.

Não-chuva. Gotas.

Continuam correndo cada vez mais para perto de mim. Agora chegaram, passaram direto, mas ainda posso vê-los. Cada vez mais solitários e quase desaparecendo no branco de neblina que se forma mais a frente, que nem o Viaduto do Chá mais eu vejo. Vai ver já nem é mais São Paulo. Ele já desapareceu, a manga verde, a chuva, mal guardada, e que se perde por aí até o próximo colecionador passar ou o Sol.

Novamente o vazio da rua. Nem apressados, nem os mais calmos. Vários vultos preenchem os tetos. Na neblina, um casal vive provavelmente a maior emoção que viveriam pelos próximos seis meses e doze dias, além de alguns segundos.