Sobre rock, jabotis e casacos vermelhos

Às vezes acho que nosso cérebro é um grande álbum de fotografias. Mas não falo de memórias de amigos ou familiares. Falo de fotos da pessoa aleatória, dessas com que trombamos nos deslizes do dia-a-dia. Ao longo da vida, colecionamos pessoas, rostos, gestos e personalidades e, de tal forma, que os tratamos como se estivessem intrinsecamente relacionados. Criamos um laço quase inquebrável entre a memória e o novo que irrompe a todo instante a nossa frente, como que na esperança de que o tempo, ou seja, o futuro, não fosse mais do que repetição. E na realidade, a memória não é mais do que isso. A esperança da repetição.
Quando encontrei-me com a garota do casaco vermelho e botas marrons, meu cérebro não poupou esforços para transformá-la em redundância dos meus vários passados. Transformou sua saia jeans em repetição da personagem do filme da semana passada, e fez de sua voz, que oscilava graciosamente de palavra em palavra, a voz de uma garota que não cheguei a conhecer na quinta série do colégio, pois que, na época, eu ainda estava sem palavras.
Mas o mais belo era o casaco vermelho, que eu não sabia de que passado vinha. Era dessas coisas que simplesmente fazem sentido, e nossa preguiça não costuma fazer questão de vasculhar a poeira dos nossos cérebros em busca de significados com cheiro de mofo. Simplesmente deixa as coisas fazerem sentido. Aliás, viram sentido de si próprias. O casaco vermelho me lembrava do casaco vermelho, e isso o tornava ainda mais mágico.
Olhei para ela várias vezes, inicialmente para vê-la. Depois, para ser visto. Era uma garota desconhecida de casaco vermelho em um show de música em plena noite de segunda-feira, e tudo o que tínhamos em comum não era mais do que fabricação dos frankensteins de restos de lembrança morta que eram as minhas memórias. Costurava pedaços de pessoas em minha mente, e tentava conversar com esses pedaços em meu cérebro, como se pudesse assim conhecê-la dentro de mim antes de conhecê-la do lado de fora.
E assim nos conhecemos. Profundamente. Conversamos por horas, sobre rock e jabotis, granadas e quintais de casa. Conheci cada gesto, cada cara e toda resposta inesperada que ela dava para cada pergunta burocrática que eu pudesse fazer. Daí minha surpresa ao vê-la bruscamente chamada ao palco. Ameaçou sentar-se em uma cadeira mas, com um violão preso ao pescoço, se sentiu incomodada e preferiu ficar de pé. Ainda teve que tirar o casaco vermelho antes de cantar com a voz daquela garota da quinta série do colégio que eu não cheguei a conhecer.
Voltou depois de cinco músicas e quase esbarrou em mim indo para o bar. Olhei para ela e fiz menção de chamá-la como se fosse um absurdo não cumprimentá-la afetuosamente, como amigos ou amantes de longa data. Interrompi-me. Não a conhecia e tinha que fingir que não a conhecia.
Pensei em ir embora sem mais palavras. Subi as escadas que davam para a saída, mas voltei com todas as palavras na ponta da língua, e que teriam sido lançadas ao ar, se não fossem dissolvidas antes pela saliva. Pela saliva, ou pelo garoto alto, com barba malfeita que conversava com a garota do casaco vermelho em frente ao bar. Ou talvez fosse pela música ingenuamente alegre da banda que subia agora ao palco, e que eu desafinava com minha tragédia fora de contexto. Voltei a subir as escadas.
Algumas semanas depois, me encantei com uma moça que tocava violão em uma festa de formatura. Ela vestia um casaco vermelho, e me lembrava vagamente de alguém. Alguém que não tocava violão. Simplesmente conversava comigo, sobre rock e jabotis.
3 Comments:
Ia chamar este conto de "Sobre rock e jabotis", mas achei que precisava chamar a atenção ao casaco vermelho já no título. Acabei com um título quilométrico. Se achar outro por aí, eu mudo.
Não mude o título. Queria saber mais sobre rock e jabotis.
Conte-me...
Do casaco vermelho lhe conto que são fábulas, que os persoangens andantes da gente mesmo às vezes querem vestir.
eu gostei do casaco vermelho.
e imaginei o casaco num cenário amarelo envelhecido canadense. se é q eu consigo imaginar um cenário realmente canadense.
mas se é imaginário, não precisa ser real, e...
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