17.2.07

Os cacos de vidro


Eu saía do teatro quando ele deixou o gorro cair. É estranho, mesmo após alguns meses em terras canadenses, ainda não acredito que eu possa falar inglês. Ao menos, não de forma improvisada. Frações de segundo se passam para que meu cérebro possa ensaiar um monossilábico "sir!", enquanto eu apontava para o gorro com o dedo indicador em uma linguagem que transbordava qualquer idéia de universal.
Ele agradeceu. Perguntou-me sobre um trecho do final da peça, que ele não tinha entendido bem.
Uma vez escrevi sobre a comunicação com estranhos. O silêncio das multidões é como uma vidraça. Alguns tem coragem de jogar-lhe pedras. Recebem de volta cacos de vidro e de berros que tentam lhes indicar sua loucura.
A vidraça é, de fato, a pressuposição da loucura universal. Pairando sobre o mundo em meu pára-quedas imaginário, visualizo um aglomerado gigantesco de formigas andando nas pontas dos pés e amordaçadas pelas bocas para que elas não derramem palavras em seus espasmos involuntários. Todas esperam por passaportes que permitam o trânsito legal entre as fronteiras do eu para o outro. Mas são também muros de Berlim de si próprios.
Sim, a vidraça é a pressuposição da loucura universal. Ao menos, até que seja cometido o primeiro ato de sanidade.
Provavelmente essa é a condição ontológica do estrangeiro. Um eterno primeiro ato de sanidade.
Tornei-me são a partir do momento em que peguei o gorro no chão. O monossilábico "sir!" retirou-me do manicômio das multidões. Ele agora me perguntava sobre o trecho final da peça.
Respondi que também não havia entendido. Rimos como irmãos de berço e nos cumprimentamos como se ainda fôssemos nos ver.
Minutos depois, entro em um ônibus e um homem comenta comigo sobre um anúncio de propaganda, estampado sobre uma das janelas. Na realidade, não comentou comigo. Jogou palavras no ar, esperando que eu pegasse, como se fosse um gorro que caía. Dei-lhe uma resposta monossilábica e deixei as palavras no chão. Tomei o cuidado de não pisar nos cacos de vidro enquanto me mudava para outro assento.