7.2.07

O genocídio diário de imagens


Estava num cinema, vendo um filme qualquer. A sala era certamente menor do que aquilo a que a majestosidade soberba de outros cinemas maiores que seus filmes lhe havia acostumado, causando uma vaga sensação de derrota pessoal a partir do momento em que entrou.
Para alguém que se acostumou a berrar para o mundo o desapego material, associando palácios à necessidade de subir-se degraus - ou, pior, degraus por onde não se pode subir, reduzindo o homem a admiração da beleza estranha das coisas que estão além do que os olhos podem ver -, este hábito foi subitamente surpreendido pela sensação de incômodo não premeditada criada pelo tamanho sutilmente errado desta sala, suficientemente estreita para que seus vários eus não pudessem deixar de notar-se uns aos outros. Deixava de ser uma multidão distraída para tornar-se uma incoerência.
Repreendeu a si mesmo de forma discreta, de modo que as vozes já um tanto irritadas de si para sua mente não fossem transportadas para sua garganta em algum tipo de espasmo comunicativo, que outros chamariam de grito. Sua amiga, que estava a seu lado, nada ouviu além dos murmúrios que ecoavam pela própria sala, em seu quase-silêncio de rio de palavras que não se importam umas com as outras. Se murmúrios fossem audíveis, seriam contraditórios. Incoerentes.
As paredes vermelhas, revestidas com um veludo listrado de preto, porém, compensavam, de certa forma, a humildade inicial da sala. Isso deu-lhe um certo conforto, ainda que efêmero, pois que percebia isso tendo a sensação de se encontrar em uma espécie de cubículo monárquico lotado demais para comportar qualquer atributo de majestade, enquanto a visão das pessoas, sentadas ao sol de quase nenhuma luz e olhando fixadamente para uma tela pálida que ainda secava a tinta do filme anterior, tudo isso criava-lhe um cenário que mais parecia fazer parte de algum estranho culto religioso. Sentou-se na poltrona razoavelmente acolchoada com a conhecida sensação de solidão daqueles que subitamente percebem que desconhecem a próxima reza a ser cantada, como pedra humana no meio do caminho avassalador dos rituais. O desconforto que sentia não era muito diferente do da criança de seis anos que se vê paralisada com o medo de morte ao se dar conta de que não conhece as regras de um corre-cotia da vida. Todos esperam que a cotia corra. Para ele, o mundo era a cotia. E ficava parado, como se correr fosse seu fracasso. Como se existir fosse seu fracasso. Na realidade, provavelmente fingia-se de morto em pleno instinto animal.
Hoje ele percebia que o incômodo não era tanto o da perda de controle sobre o instante, ou sobre o imediato, mas sim, o da sensação de que alguém poderia tê-lo avisado sobre as regras. Havia sido esquecido.
Certas imagens - como a parede branca que não se altera com o caminhar rápido do cotidiano, a pia azul clara, já velha, que tem sua beleza nostálgica negligenciada pelo sono da manhã e pelas reflexões noturnas, ou a árvore retorcida do cerrado que se confunde entre tantas e desaparece aos olhos geometricamente retos da modernidade - são imagens que nosso olhar-atrás-de-olhar captura desavisadamente, criando uma superlotação cerebral de memórias. A existência só se torna viável por meio de um genocídio diário de imagens.
Ele pensava neste cemitério de momentos e via o túmulo de sua própria imagem. Não havia sido simplesmente esquecido. Tinha sido confundido com paredes brancas e pássaros pardos. Assassinado pelo olhar distraído do mundo. Distraiu-se enfim com o apagar precipitado das luzes do cinema.

1 Comments:

Blogger Lasevitz said...

Na realidade, comecei este conto com uma idéia um tanto diferente e, de fato, resolvi publicá-lo ainda inacabado.

Achei que isso que tinha escrito soava como um final, e resolvi deixar assim por enquanto. Mas o final é outro, e continuarei o conto assim que possível. Talvez amanhã ou depois...

07 fevereiro, 2007  

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