12.2.07

O gato de olhos azuis


Já era fim de tarde, daquelas tardes em que as famílias se reúnem após os longos almoços de domingo, quando eles me convidaram a entrar. A casa era de um casal de amigos da família, já de meia idade e uma filha adolescente. Eu visitava como se cumprisse ordens. Não sei de quem.
Algumas relações parecem se sustentar por redundância. Aliás, não por redundância. Por precaução. Via a vida como um prédio em construção e aquela família parecia ser parte fundamental da pilastra central de sua própria arquitetura, apesar de nunca ter sido capaz de entender bem como. Agiam como tijolos, e parecia natural que agissem como tijolos. Pedaços de pedra não se questionam.
Sim, entrei na casa, e entrei esbarrando em uma ou duas paredes como se fossem três ou quatro. O corredor estreito que dava para a sala se tornava ainda mais estreito com as decorações que se dependuravam por toda a casa, de modo que andava como se não pudesse. Os pés faziam o chão ranger, e não lembrava de ter ouvido o ranger do chão quando eles entraram. Jamais um chão pisoteado havia celebrado tamanha glória contra um pisoteador. Qualquer pisoteador. O chão era uma bota, e me esmagava.
Mas não era para tanto. A tragédia do eu era um belo romance ainda a ser escrito e eu gostava de imaginar seu prefácio nas horas vagas, entre um corredor e uma sala.
Sentei no sofá da sala com o leve desconforto de uma almofada branca acolchoada enquanto trocava palavras já esquecidas com o casal que se sentava na minha frente como se ouvisse. Teria me esquecido dos minutos seguintes do encontro também, não fosse a filha vinda do porão com um gato nas mãos. Gato recém-acordado, diga-se de passagem, e que talvez se assustasse mais com a presença estranha na casa não fosse o absurdo de se perceber transportado, antes que o tempo pudesse fabricar um instante, de um sonho incalculável para dois braços que faziam da paisagem fantoches enquanto o carregavam rapidamente até o tapete branco no meio da sala. Senti por ele, pois sabia que havia sido retirado de seu sono por minha causa. Aproximei-me para tentar agradá-lo, e percebi seus olhos peculiarmente azuis, observação que devo ter metralhado em voz alta sob a forma de vocábulos.
Atenta às minhas aleatoriedades, a garota que me trouxe o gato voltou ao porão. Retornou segundos depois. — Os gatos de olhos azuis tem olhos pouco azuis quando acordam, disse me mostrando fotos do gato, ali com olhos ainda mais brilhantes. Acho que ainda folheava as fotos nas mãos quando minha mente, pouco confortável na almofada branca acolchoada, resolveu descer os degraus até o porão sem se preocupar em consultar o meu corpo. Voltou sem calcular o tempo que levou, trazendo nos bolsos os degraus do porão. Eram nove, mas poderiam ser onze ou doze, que se multiplicavam por duas idas e duas voltas para somarem trinta-e-seis degraus que se subiam e se desciam. E estranhamente, por minha causa.
Olhei em seus olhos e percebi que não eram azuis. Eram de uma cor que eu ainda não tinha visto, pois havia me esforçado durante o almoço para não agredi-la com meus olhares. Geralmente, falava com ela as palavras que os silêncios desconfortáveis me pediam para falar, e se não a olhava nos olhos, era simplesmente porque não achei que podia. Agora, pensando, não sei bem explicar. Indiferença, medo, pudor, polidez, são palavras que são significado de si próprias, mas pouco mais do que isso. Acho que não olhei em seus olhos antes por achar que seus olhos seriam frágeis demais, em seus quinze anos nublados, para tolerarem a agressão de serem vistos. Ser visto é tornar-se o mundo do outro. É a fração de instante em que um impera sobre os sentidos do outro. Tudo isso me fazia sentido desde que não fosse pensado. Distraído, não pensava. Então não olhava.
Ela mesma havia falado pouco até então. Falava agora dos olhos azuis do gato como se não houvesse mais do que falar. E talvez de fato não houvesse, no pequeno dicionário de palavras que se forma entre duas pessoas tão distantes, mas que olham de tão perto nos olhos da outra. A ponto de ver um gato de olhos azuis.
Não me lembro do que falamos depois, e fui embora com um terço de olhar pela janela do carro. O gato provavelmente voltou a dormir depois de uns nove degraus.

7 Comments:

Blogger katine walmrath said...

Muito interessante!
Amei: "Ser visto é tornar-se o mundo do outro." Amei.
Abraço.

13 fevereiro, 2007  
Anonymous Anônimo said...

Interessante, a Katine, leio agora o comentário dela quando abri a caixa para postar, destacou tb o que eu de pronto destaquei enquanto lia. Gosto tb de escrever e determinar sentenças. Gostei da inqueitude do personagem. Da construção, "minha mente (...), resolveu descer os degraus até o porão sem se preocupar em consultar o meu corpo. Voltou sem calcular o tempo que levou, trazendo nos bolsos os degraus do porão."
Interessante o que vc falou lá no meu blog a cerca dos olhares:um querendo encontrar, outro evitar.
Senti Senti ecos de Lispector e Borges em seu textos, vc anda bem acompanhado.
Pode ser que não perceba-os, mas talvez porque não cuidou em olha-los. rsrs
abcs
...
Ah! Tem contatos com o Haragano?
É tb de Brasília e tem a mesma competência que vc para escrever.
...

13 fevereiro, 2007  
Blogger Lasevitz said...

Katine,

obrigado pela visita e pelo comentário, você sabe que é sempre bemvinda! Abraço!

JJLeandro,

Gostei que você tenha comentado justamente o trecho dos degraus, que é o meu favorito nesse conto. Cheguei até a considerar intitular o conto de "Trinta-e-seis degraus", e ainda me pergunto se não seria uma melhor escolha. Degraus e olhares são mesmo a essência desse conto.

Interessante também você lembrar Lispector. Já não me lembrava, mas é verdade, ela me influencia bastante. Borges ainda não li. Ultimamente, tenho tido Garcia Marquez e Kundera pairando na minha mente enquanto escrevo. Não sei se é perceptível...

Abraço!

13 fevereiro, 2007  
Blogger Lasevitz said...

Ah, não conheço o Haragano. Ele tem blog?

13 fevereiro, 2007  
Anonymous Anônimo said...

OLá, sim
Linquei neste endereço: http://jjleandro-jjleandro.blogspot.com/

é bem no final da página, ao meio, que ficam os links.

abcs

13 fevereiro, 2007  
Anonymous Anônimo said...

O Haragano n tem blog, ao que eu saiba, mas está no Overmundo.

13 fevereiro, 2007  
Anonymous Anônimo said...

Texto surpreendente, o que não é algo incomum ao dono do blog, não é mesmo?
Quero destacar o segundo parágrafo, que é construído para delinear o tal âmbito familiar. Usando objetos para mostrar a rusticidade daquela família, o que, de fato, nos remete aos demais lares ocupados por pessoas caladas, escondidas em seus próprios “mundos”: ‘Pedaços de pedra não se questionam’.
Também encontro no quarto parágrafo uma período que vai descrevendo o espaço e é pontuado com doses introspectivas, o que acontece ao longo do texto. Uma escolha fabulosa.
Aplausos ao grande escritor que lança “pérolas aos poucos”.

15 fevereiro, 2007  

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