30.1.07

O teatro esquecido de nós para nós mesmos


Após uma longa reprise do dia em minha mente, saio do banho murmurando versos aleatórios. Estava um pouco desconfiado de que havia, enfim, perdido minha habilidade de falar. Bom, não de falar. Eu digo, de colocar palavras ordinárias em uma sequência tal que possa, ao menos por alguns, ser chamada de espetáculo. Aquilelas coisas que pasmam.

Acho que trato minha existência como se fosse uma constante ameaça de esquecimento. Ajo como se tudo o que sou possa ser esquecido a qualquer instante. Já está se esquecendo. Minha vida é um constante ato de lembrar. Ou de conhecer de novo. Reinventar o que não pode ser lembrado.
Tenho em mente uma imagem de um prédio de um bilhão de andares. Coloco um tijolo. Esbarro no do lado, que derruba com ele mais dois. Coloco mais quatro, derrubando mais três.
Geralmente me satisfaço quando chego ao orgasmo poético, no quarto ou quinto verso aleatório — aquela sensação de conquista do verso perfeito que transforma o indivíduo no ser humano mais forte do universo, ainda que por três segundos. Um único verso, que existiu para ser belo. E foi belo para ser esquecido. Jamais será escrito.
Não encontro o verso.
Ando pela casa. Enquanto meu cérebro mantém meu corpo em movimento burocrático, colhendo segundas vias de um cotidiano registrado em cartório, eu vasculho minhas memórias. Quero frases inesperadas.
Subitamente, me deparo com o espelho. Continuo a andar, como se não me importasse. Solto uma frase de um filme que não é meu. Agora, é como se o filme se fundisse com aquele momento solto de uma rotina entediante, ou como se a rotina entediante se fundisse com um momento vago do filme. Acho que o belo é alterar o significado de um instante ao penetrá-lo com outro.
A sala era escura. Já era noite, e as luzes estavam apagadas mais por preguiça do que por capricho. Um sofá, duas mesas, algumas cadeiras e uma televisão, pareciam ter sido organizados milimetricamente, como que querendo aproveitar o espaço em todas as suas possibilidades. O espelho - fatiado em três pedaços, como que para refletir uma visão esquartejada do mundo - era estreito e alto, e estava preso na parede, do lado esquerdo da porta que dava para a cozinha.
Os filmes, em geral, garantem o significado de seus instantes por meio de paisagens, cores e trilhas sonoras. A vida altera o significado de seus instantes ao tropeçar em imagens que o cinema do acaso insiste em passar. Bom, não que o cinema do acaso seja o único. Na rua dos nossos cérebros, existem vários outros, muito menos casuais.
Sobre a fusão de imagens, acho que ainda durou mais alguns instantes. Continuei andando e o som do meu pé se arrastando no carpete da sala me lembrou do chão e, com ele, do próximo passo-atrás-de-passo que o dia-atrás-de-dia exige. Volto a minha realidade nua, e sinto sede. Quero beber água e percebo que estou procurando por um copo no armário errado.
Ando em círculos pela cozinha pois já não lembro o que procurava. Tomo consciência da peculiaridade do fato. Invento uma platéia, um eu-em-multidão, que vê nisso um espetáculo. Aplaudo minha própria cena insólita como se fosse um circo de mim mesmo. Aliás, um circo não. Um verso. Enfim.
Bebo um copo d'água, ainda morna, e o deixo em cima da pia. Volto para o meu quarto, e já não há mais platéia.