28.1.07

O francês que falava com formigas

Às vezes, tenho a impressão de que palavras são proibidas. Digo, no sentido de alguns contextos específicos, ou mais precisamente, o contexto algum.
Posso ser mais claro. Parece haver uma espécie de barreira que me separa das pessoas aleatórias que andam no meio da rua e que, como uma polícia de palavras, me proíbe de falar. Ao menos, sem a autorização devida de uma boa desculpa burocrática, tal como "para que lado fica o ponto de ônibus?".
Em um filme, uma mulher esbarrava em um homem aleatório na rua e reclamava. — Eu não quero ser uma formiga. Formigas esbarram-se umas nas outras, dia após dia, sem tomar conhecimento de si. Não sei se a mulher do filme protestava contra a completo isolamento do indivíduo perante a multidão ao seu redor, ou se era contra a barreira invisível que separa o indivíduo aleatório do outro. Na dúvida, fico com a segunda possibilidade, que me convém.
Aliás, andar em silêncio no meio da multidão de anônimos que é a rua é como um ritual sagrado. Andamos na expectativa de não esperar por nada. Nenhuma interrupção em nosso passo-atrás-de-passo concentrado que se soma com pensamentos aleatórios que tentam, tanto quanto possível, ausentarem-se do mundo ao seu redor. Supõe-se que o mundo, ali, não interessa. Andar na rua é andar em lugar nenhum.
Daí minha surpresa quando, hoje, deparei-me com o francês. Estava com um amigo esperando por uma pizza quando ele veio, como se pudesse. Não tinha nenhum papel assinado pelo presidente da república, nenhuma autorização especial do governo. Nem mesmo um uniforme. Perguntou de onde éramos, como se rompesse uma bolha surreal. A bolha do apartheid entre o nós e o outro. É como se a visão periférica do olho quissesse invadir o foco central.
O choque foi menor do que eu pensava. Durou dois segundos. — Brasileiros, respondemos em bom inglês — lembrando que estamos em Toronto, cidade de qualquer país. Ele era magro, alto, cabelo talvez curto demais e um rosto que se aproximava do clichê francês, mas peculiar demais para um clichê. Falava em inglês difícil, com sotaque que, por azar, o fazia parecer uma espécie de geek. Sotaques não respeitam as personalidades, pensei comigo mesmo. Perguntou das nossas vidas e da política brasileira. Respondemos testando seu conhecimento de América Latina, dando-lhe uma chance para se encabular, enquanto perguntávamos sobre sua vida e a política na França. Nunca tivemos a expectativa de que saíssemos da superficialidade. Ele em nenhum momento justificou-se pela quebra do apartheid. Nós, não perguntamos. Falamos sobre aquilo que surgia, como que trazido pela maré das conversas sem pauta.
Conversamos por uma hora. Nos despedimos sem trocar contatos. A conversa aleatória não tem telefone. Está em toda parte. Foi embora e ainda pudemos ver andar, ao longe, o homem que transformava formigas em gente.