11.4.10

Primeira tentativa de controle do tempo


O tempo passava.

Queria ouvir um relógio, para ouvir o tempo passar. É difícil acreditar em um tempo que passa, assim, em silêncio.

Procurei ao meu redor, mas não encontrava nada. A praça estava deserta. Não usava relógios de pulso desde que entrei na faculdade, me apertavam, atrapalhavam o sangue que queria passar, que passavam nervosamente pelas veias do meu corpo nos momentos de angústia, e que passavam nervosamente pelas veias do meu pulso quando a angústia me fazia importar com os momentos, e com o tempo, e com o relógio, que então, justo quando sua existência era devidamente lembrada, mais apertava meu já apertado pulso, mais obstruía minha já obstruída existência. E então me livrei do tempo.

Não, não, só me livrei do relógio, não me livrei do tempo. Ainda que a tentação de confundir ambos seja grande, essa vontade de substancializar o tempo, poder pegá-lo em mãos, fazê-lo andar, e parar, e andar, e parar, e andar, lentamente às vezes, com passos estrondosos em outras, como uma marionete, e eu tivesse em uma das mãos uma corda para puxar os minutos, outra para puxar as horas, outra para os dias, outra para os instantes, outra para o esquecimento, outra para a angústia, outra para as minhas mãos no corpo de Tyu, outra para os braços, outra para a cintura, outra para as suas pernas, brancas, sempre um tanto avermelhadas.

O Roca enfim jogou, meteu um cavalo na lateral atacando o meu bispo. Não era nada grave, eu tinha um bispo na proteção do próprio bispo, e o único problema era ficar com o primeiro bispo preso na defensiva. Éramos os únicos na praça naquela tarde e o céu, cinza, daqueles bem cinzentos – fitei-o por um instante, tinha cor de piche aquele cinza, parecia uma rua, larga, muito larga, e aquela idéia me passou um sentimento confortável, um sentimento de solidão, de solidão fácil e confortável – aquele céu queria desabar, e deixava isso bastante claro. O Roca também sabia disso, ainda que não chegasse a olhar diretamente para o céu.

***

Comecei a notar o rosto do Roca. Estava crispado, a tez rígida, bastante rígida, os olhos concentrados com uma concentração quase mórbida, os olhos focados sobre todas as peças ao mesmo tempo, e ao mesmo tempo talvez não estivesse olhando para peça alguma, seus olhos se equilibrando entre o tudo o nada, ora pendendo para um lado, ora para o outro, ora parecendo vivos, ora parecendo mortos, e afinal, era uma linha tênue. Dei para me irritar um pouco com aquilo, com aquela visão de um Roca que parecia nada ver, nada querer, e a própria associação daquela imagem com a idéia de um Roca morto, daquela estátua de Roca, tornada monumento em uma praça vazia e quase debaixo dágua, aquilo tudo me incomodava, quase que fisicamente ainda que não chegasse a sê-lo, como se minha mente se esforçasse por sabotar meu estômago para justificar para mim mesmo a náusea que eu próprio já sentia com ou sem estômago. Pensei que poderia simplesmente me levantar, sair dali, poderia caminhar um pouco pela praça, erguer os olhos para aquele céu de chumbo, flanar com as nuvens ao invés de flanar com os humanos, para variar, e de qualquer forma era uma idéia que me agradava. E de qualquer forma o Roca provavelmente não notaria. Parecia que poderia permanecer ali, estático, por dias e dias, como se pertencesse àquele banco de pedra, como se sempre tivesse pertencido, como se o próprio movimento de Roca instantes atrás, movendo seu cavalo para atacar meu bispo, até aquele movimento parecia ter sido feito de um não-movimento, era um movimento paralisado, inconcebível, afinal, tratando-se de uma grande pedra, ainda que humana, e posto que humana, e posto que pedra.

Ao mesmo tempo, havia algo naquilo tudo que também me prendia, que me segurava àquele banco, e de tal forma que me fazia perder qualquer vontade de me levantar, como se fosse um esforço exagerado aquele de me levantar, romper com aquela mesa, deixar Roca ali parado. Claro, eu teria de me explicar depois, isso é fato, o Roca invariavelmente ficaria chateado, e conhecendo o Roca era capaz de ficar sem falar comigo por semanas e semanas a fio. E em geral eu preferia evitar esse tipo de problema, principalmente depois do episódio do aniversário do Roca, e principalmente depois do banho que deram no Roca, de roupa e tudo, na própria piscina, da própria casa. Não seria eu quem iria atiçar o seu temperamento de novo, certamente que não. Mas havia algo mais, maior do que qualquer medo de romper com regras de conduta social, maior do que o episódio da piscina, Roca saindo encharcado, bufando e espirrando ao mesmo tempo, maior do que o meu próprio peso sobre a Terra, e que talvez fosse até a somatória de tudo isso junto, mas que ainda assim fazia algo maior, diferente. Uma espécie de alegria me contagiava por dentro, uma quase alegria, mais letargia do que alegria, uma sensação de que tudo estava bem como estava, e de que as coisas, mais do que em qualquer outro momento da minha vida recente, estavam todas em seus devidos lugares, e que qualquer movimento em falso, qualquer tentativa de ajeitar a bunda dormente naquele banco duro, qualquer gota de chuva que enfim se desprendesse, e enfim se arremessasse, e enfim se espatifasse, contra mim, contra a mesa, estaria também contra essa alegria do mundo que eu – ao menos era o que parecia – parecia ter encontrado. E isso não podia, não deveria acontecer.

Roca tinha um rosto um tanto cinzento e que naquele momento já parecia se confundir com o céu. Parei meu olhar sobre o Roca. Tanto o Roca quanto o céu se pareciam de alguma forma com tempestades, e era sim pelo cinza que os recobria, sem dúvida, mas também não era só pelo cinza. Parecia que era Roca que podia chover a qualquer momento, e não o céu, ou talvez ambos, ao mesmo tempo, realizando uma proeza, uma perfeita sincronia entre ser humano e cosmos, quem sabe. Notei-lhe a barba sólida, não tão densa, até razoavelmente rala, alguns diriam que mal cuidada, mas ainda assim, sólida. Tinha uma dessas aparências de homem sobre quem se pode dizer que parece ser sujo e elegante ao mesmo tempo, maltrapilho e garboso, ou alguma outra dessas estranhas dualidades que por alguma razão parecem bem caber a alguns homens. Meus olhos agora conseguiam descansar confortáveis naquele rosto petrificado, sem vida do Roca, sem paisagem que lhe servisse de plano de fundo, sem uma brisa que batesse em meus olhos e me acordasse, ou que passasse pelo Roca, pelos compridos cabelos encaracolados do Roca, e lhe dessem vida novamente, como que lhe tirando de um sono profundo, perturbando um momento sagrado, there are some holy moments and there are some moments that are not holy, right? Right, Caveh, right. Talvez fosse isso afinal, essa alegria, essa letargia que me tomava, que me prendia ao banco de pedra da praça, meus olhos se vidravam no nariz sarcástico e cinzento do Roca e eu vivia um momento sagrado. Mas como eu poderia ter sido tomado assim, de súbito, por esse momento? O que havia naquilo tudo, naquela cena patética e exageradamente longa, para torná-la um momento sagrado? Não havia nada. Eu parado, o Roca parado, a mesa de xadrez, parada, meu bispo, parado, se defendendo do cavalo, parado, uma pequena praça no meio de uma quadra residencial, parada, parada, e vazia. Parecia que o Roca ia dizer alguma coisa.

Não disse. E talvez fosse mesmo isso, esse silêncio monstruoso de existências o que tornava sagrado aquele momento, e que me preenchia por dentro de alguma forma, algo como um orgasmo em formação, paralisado antes do êxtase, durante o êxtase, naquele exato momento em que o orgasmo ainda não é orgasmo, em que a idéia ainda não é idéia, aquele momento entre a surpresa com a visão deslumbrante de um pôr-do-sol inesperado e a sua consciência que imediatamente sabota a paisagem com a sua própria experiência, como se a lembrança de outros sóis que se puseram, de outras garotas de saia curta correndo descalças pelo calçadão, das pernas vermelhas de Tyu, como se a lembrança da repetição, ainda que da fração de segundo anterior, transformasse todas as frações de segundo subseqüentes em uma espécie de quase-experiência, sub-experiência, em que o momento já não é mais do que uma espécie de pomposa ferramenta – cronoalicate, ou momento de fenda, me diria o Roca, se falasse – de reprodução tosca de um instante original, autêntico, que já passou. Tão rapidamente que mal se fez notar. Mal existiu. Em toda a sua grandiosidade, os grandes momentos afinal, mal existem. Como quando fui com Tyu caminhar pela praça da reitoria, pelos corredores bem jardinados que circundam a área privilegiadamente romântica da reitoria, desde que os casais que por lá se aventurassem se prestassem ao exercício de abstração da presença pesada, burocrática, daquele odor de fotocopiadoras e de ácaros que a reitoria exalava. Lembro de quanto nos sentamos em um gramado, e devemos ter conversado sobre qualquer coisa antes que eu falasse algo sobre minha paixão por Tyu, meu coração palpitante por Tyu naquele momento, debaixo de palmeiras troncudas, cercado pela grama bem feita como raramente se via pelos pátios universitários, sob um céu que muito queria trovejar, de um dia que muito queria se acabar, de uma Tyu que não sabia o que dizer e que tinha que dizer algo, logo, que tudo ao nosso redor parecia ter pressa, como se tudo, esse tudo inventado pela mente em momentos mais conspiratórios – tudo é muito confuso, tudo é muito confuso, me dizia Tyu, Tyu com as pernas enroladas no lençol –, como se tudo tivesse para onde ir, para onde correr – talvez tudo para Tyu fosse uma espécie de cosmologia, uma noção holística de amor que fazia com que tudo pudesse se confundir, se misturar com nós dois, como se tudo nos causasse. E contra tudo, parecendo ter tomado alguma decisão, nem que fosse a decisão de que não saberia que decisão tomar, não naquele momento, a cabeça de Tyu resignou-se ao meu ombro. Sim, talvez aquilo tenha sido um momento sagrado, Caveh. Aquela sensação do calor súbito do rosto de Tyu sobre o meu ombro, os cabelos de Tyu se balançando contra o meu rosto. Aquilo era sagrado. But who can live that way?, me perguntaria o Caveh com seu entusiasmo pessimista de sempre. A cabeça de Tyu começou a pesar. O vento frio me deixava desconfortável. O silêncio de Tyu começou a ficar longo demais. Os trovões não respeitavam nosso silêncio reverente – reverente ou medroso, perguntaria o Roca, reverente ou medroso. Tudo estava contra nós Tyu, tudo.

Mas agora meus olhos estavam presos aos olhos de Roca, depositados em Roca, nos olhos claros de Roca, quase cinzas, quase brancos, quase transparentes de Roca. Aquela sensação de alegria que me contagiava por dentro, aquele orgasmo que me acometia parecia agora começar a me sufocar, me doía, me dificultava a entrada de ar. Tentei puxar o ar para dentro com toda a força, mas o ar não veio, como se também estivesse preguiçosamente, letargicamente descansado em seu próprio banco de pedra, em sua própria partida de xadrez, defendendo o seu próprio bispo, sabe-se lá de qual cavalo. Desisti do ar. Senti que já não me importava mais tanto com o momento, sagrado ou não, e que agora simplesmente esperava, esperava por alguma coisa. Comecei a pensar, enquanto esperava, naquilo que havia pensado em relação a Tyu. Que talvez essa coisa de silêncio reverente – reverente ou medroso, me repetiria o Roca, podia quase ouvi-lo – talvez não fosse nem reverente nem medroso, ou talvez até fosse, um pouco dos dois, mas a questão não era essa. A questão era que talvez se pudesse inverter um pouco a ordem das coisas, não era a reverência que criava o silêncio, mas o silêncio que criava as reverências, e portanto, também a sacralidade, das coisas, dos momentos. De tudo. Em outras palavras, o sagrado poderia ser simplesmente aquilo perante o qual não sabemos, nem temos, o que dizer. Acontece quando uma coisa é maior do que quaisquer palavras que passem pela nossa mente (comecei a achar a idéia um tanto ingênua nesse ponto, estou prestes a afrontar os sagrados alheios, quase abortei o pensamento, acabei seguindo por curiosidade, o importante não são as idéias, o importante é ver para onde as idéias vão, os fins justificam os meios, ao contrário do que acontece no mundo real, na práxis, onde as coisas são mais irreversíveis do que no mundo das idéias; pense cinco mil vezes antes de falar, cinco mil vezes), mas poderia ser também quando nossas palavras são fracas demais para que valha a pena que preencham o momento, ou ainda, que diante de um momento gigantesco, tenhamos palavras ainda maiores e que não possam ser caladas, e que o momento tenha que reverenciar nossas palavras. E se for assim, muitos dos que foram momentos sagrados poderiam tê-lo sido – e isso se perceberia após uma detalhada revisão das sacralidades de um passado recente – somente pela falta de habilidade com as palavras de uma platéia que se calou perante este tão aparentemente notável momento. Talvez eu simplesmente tenha ficado sem saber o que dizer quando Tyu deixou sua cabeça pender sobre meu ombro, mas então ao invés de me sentir simplesmente embaraçado pelo nervoso silêncio que me tomava a voz, tomei o silêncio como um ato de submissão àquele momento, àquele instante que se mostrava maior, muito maior, do que eu mesmo.

Agora estava parado, inerte a olhar o Roca, e isso que o Roca até agora há pouco me provocava náuseas. Agora me provocava essa estranha plenitude, e agora novamente já era plenitude e náusea ao mesmo tempo, pensei que talvez ainda estivesse sufocando, talvez devesse mesmo me levantar, ainda precisava de ar, ainda precisava de ar, ar, ar, ar, ar. Mas algo em mim não se importava muito com isso. Algo em mim se deixava sufocar.

Talvez seja isso mesmo Caveh, talvez o momento sagrado seja mesmo desistência, uma preguiçosa desistência perante tudo. Tudo, e tudo é tudo mesmo, o ar mas não só o ar, o chão mas não só o chão, o bispo mas não só o bispo, e só restava a gravidade, o banco de pedra que coincidentemente teve de arcar com essa desistência, os olhos do Roca, que estavam lá, simplesmente, estavam lá. Dexistência. Na realidade, agora que digo isso tudo, já não me parece que o Roca esteja lá. No lugar do Roca vejo no máximo uma silhueta esbranquiçada, confusa, indefinida, uma espécie de mancha pesada sobre o banco de pedra a minha frente. Tento forçar os olhos, como se pudesse penetrar, perfurar a realidade, essa cortina estranhamente branca que me esconde o Roca, sei que o Roca está ali, sempre esteve. Me senti tomado por uma angústia gigantesca, me sentia esvaziando, o momento se esvaziava, não somente o Roca, não, não somente. Tentei resgatar o Roca, a imagem do Roca na memória, talvez pensando que poderia transportá-lo diretamente, como em um transplante de imagens, de mim para o não-mim, esse estranho exorcismo da memória. Mas a imagem de Roca já não se formava nitidamente em minha mente, se desmanchava, e parecia se desmanchar mais quanto mais eu tentava lembrar, como se eu mesmo sabotasse a memória do Roca, sabotasse a imagem do Roca, a minha frente, esfregando na realidade meu próprio esquecimento. E não era só o Roca que desaparecia. A praça era toda tomada por uma grande e estranha neblina. O cinza que antes dominava as cores da paisagem com pequenas perturbações cromáticas – a bicicleta azul encostada no poste de luz, parecia abandonada propositalmente, quase uma pichação naquele cinza tão consistente – agora dava lugar a um branco decidido, uniforme, e que tomava praticamente tudo, os prédios, o gramado, o Roca, a bicicleta azul, o poste de luz, o Roca. E Tyu? Tyu eu ainda conseguia ver. Via nitidamente, seus lábios finos e secos, seu nariz delicadamente protuberante, suas quase-rugas que ainda a deixavam jovem. Tyu era tudo o que eu via. Pensei que talvez sequer estivesse vendo Roca, mesmo antes. Era isso minha alegria, era aquele sentimento de ausência, Roca não estava lá, nem Roca, nem ninguém, nada se movia, não havia vida, por isso o êxtase, por isso o momento, sagrado. Tudo estava vazio, e esse vazio que se formava era confortável, excessivamente confortável. Já não era mais êxtase o que eu sentia. Nem náuseas. Tyu agora era minha única possibilidade de existência, e ainda assim existia agora somente dentro de mim, Tyu, os dedos afinados e tortuosos de Tyu. E poderia continuar assim, ad infinitum, bem acolhido por esta aconchegante cegueira branca, esse branco-Tyu monocromático que minha retina inventava, brincava com ele, fazia gradações. O bispo ainda se defendia do cavalo, auxiliado pelo outro bispo que se posicionava por trás. E isso também poderia ter continuado assim, e estaria tudo bem. Não fosse minha curiosidade. Não sei em relação a quê.

Quase por reflexo, tirei dali o bispo, ameaçando um peão do Roca que até então avançava impunemente pelo tabuleiro. Imediatamente, pude ouvir um estrondo de trovão. O céu era de um cinza roxo, inchado por dentro, e que se arrebentou sem piedade sobre toda a praça, sobre mim, sobre o tabuleiro, e o Roca, que de qualquer forma pareceu não dar muita importância à coisa. Uma criança veio correndo em nossa direção em uma bicicleta azul movendo-se a toda velocidade, e era a única coisa que contrastava com o cinza roxo do céu naquele momento.

(*) Oitavo capítulo para livro, ainda que o sétimo e o sexto ainda insistam em permanecer sem expressão escrita. Primeira vez, aliás, que escrevo qualquer coisa em um ano. E pode ter dado errado. Não tive coragem de conferir, wntão, quem for ler, que sirva de cobaia.

12.1.09

Víque através

Rezando, de cara a la pared, se hunde la ciudad.

Hunde, como em afundar? Afundaria minha cara contra a parede se fosse possível, ou se houvesse parede e não janela, se fosse parede e não montanha mato alto casa latifúndio casa cabras montanha casa, é engraçado até, isso de olhar o mundo correr. Fugir. Foge mundo. De mim, foge! Foge como se fosse um filme fugindo, uma cena atrás da outra, o elevador fugindo de Nicolas Cage fugindo de Merryl Streep fugindo de Nicolas Cage assim como o agora fugiu do agora a pouco, e é tudo fuga, covardia, cinema, tempo e  janela, todos, nenhum existiria sem a covardia da fuga, isso de já não ser mais. Hunde, como em fundir? Outra cabra mato cabra. Víque recusa a janela, olha para o banco do lado, o teto, provavelmente ultrapassou o teto e corre com os olhos em direção ao céu que não foge nem jamais fugirá, essa coisa absurdamente imóvel que talvez seja mesmo o que é Víque, essa paralisia metódica, ambiciosa, admito, danou-se afinal com o teto, mas ainda assim. Para o céu. Para mim. Agora olha para mim, o olhar sério, demais talvez, e não acho que haveria razão para isso agora, ao menos que eu me lembre não haveria e de modo então que talvez não seja um olhar sério, talvez um olhar contundente, sereno, fugaz, diabos, Víque, diabos, o que você é afinal? Hunde, como en hundir. O ônibus segue atravessando uma estranha zona rural onde nada parece ser um lugar só, os horizontes são confusos demais, casas cabras montanhas casas não parecem começar onde termina a outra, não terminam onde começa a outra, se misturam demais, se fundem demais, e é tudo muito impressionista, não há contornos, não há fronteiras, não há. Claro, há sempre a geopolítica e a cartografia no mundo servindo ao desmanche de qualquer arte que quaisquer olhos (meus) possam atribuir a qualquer artista (Deus?) absurdo (ainda eu, em última instância). Há, também sempre, Víque para lembrar, não sei quando abandonou o teto e o céu, acho que foi por um instante e záz, placa de trânsito e olho na placa, para lembrar que passávamos da fronteira, e que havia fronteira, linha imaginária entre um mato e outro, um daqui pra lá, e um daqui pra cá, salto fantástico que para Víque significava prerrogativa para que para trás ficasse o português, daqui pra lá, a fala forçosa e golpeada do castelhano, daqui pra cá. Em seu olhar Víque trazia certa glória vingativa, essa inversão de natividade, esse avesso súbito de nós e agora Víque mão segurando o queixo aceitando a janela largava o céu e se borrava de vez aos meus olhos, e ouvidos, e palavras, também borradas. Hunde, como em borradas. Não enxergava o céu de Víque, sou incapaz de compreender a janela de Víque, droga, quase não enxergo Víque, agora bastante compenetrada, matocabrmatomorrvíquecabraato, sem começo, sem fim, sem meio, e não sei se falo, se me arrisco, se expulso Víque de sua janela rumo a mim, provavelmente tão borrado quanto a janela, ou mesmo, se Víque quer ser expulsa, se Víque quer minha palavra, se quer que eu emita, crie sons, Víque posso até berrar, Víque, se quiser. Me vem a vontade de estalar os dedos, um dedo contra o outro dedo, esse quase monossílabo que não chega a precisar caber em letras e que me abriga (não, não me abriga) de tradutores, me abriga de intérpretes, me abriga, leitor, de ti. Estalo e o estalo é o primeiro som nesse dia que me faz sentido, tlac, tlac, tlac está no dicionário, letra tlac, primeira letra e última, tlac, um alfabeto inteiro, tlac, essa palmada na atenção, pancada na paisagem, a violência que a todo verbo conjuga, e Víque me olha, relutante com o canto do olho, a boca talvez pudesse ter sorrido, talvez. Hunde, como em afundar. E olho nos olhos de Víque. E não sei se Víque olhava em meus olhos. Talvez olhasse através dos meus olhos, como olhava antes, através do teto, e depois, através da janela. Não saberia então dizer o que ela veria. O que havia afinal através? O que há antes de mim? Víque, que não se importa, através olhava para as costas (devo dizer barriga) do banco vazio a sua frente. Vazio não completamente, ocupado que era, sim, por pernas que se espreguiçavam e que prolongavam o corpo que ocupava o banco (barriga, costas) ao lado, e sei que havia um fim de pé que tocava a janela, tocava, não atravessava, não assistia, um meio de cintura que se permitia visível entre um banco e outro banco, meio princípio de jeans, meio final de moletom, azul, escuro, e sei da mão, ligeiramente peluda e dependurada, despencando pelo encosto de braço que dava para o corredor. O que havia afinal através? Um senhor de idade, um jovem, cansado, era uma longa jornada de trabalho, aonde, mineração, de carvão, ah, sim, um trabalho cansativo, sim, fadigante, perturba a saúde, minhas mãos, pretas e é o carvão, que sobe pelos braços, sobe pelos ombros, alcança pescoço boca e nariz, trata-se de um senhor completamente coberto de carvão, uma sombra deitada e que viaja a minha frente, carvão sobre os olhos e ele já não enxerga, embriagado de si próprio, nem a janela, nem o mato, nem as cabras, o sol que começa a se pôr, as costas (longe demais, para mim, lejos, muy lejos) do banco da frente, o de trás (costas, barriga, intestino já enjoado, essa viagem que não acaba, que hunde, como em enjoar), nem o teto, o céu, nem Víque, nem através, nem depois, talvez antes, olhos virados para dentro, é o que lhe resta. Ele se move, senta-se e, no chão do corredor agora o sol projeta sua sombra, sombra da sombra. Talvez sejam exatamente iguais, e então não seria sombra, projeção, seria espelho, realidade, carvão do carvão, e já não se poderia mais dizer quem é espelho de quem, o que é o um do outro, seria sombra enfim em glória, sombra enfim não como projeção, sombra como tradução. Penso em perguntar-lhe. Hesito, penso que seria absurdo perguntar-lhe, moço, carvão, afinal, qual é você? Qual ao invés de quem, está aí toda a diferença. Víque novamente observa a janela, através, cabra cabra mato mato mato cerca, e o sol que persiste, que não foge, covarde como os outros, que fica simplesmente, como se olhasse, de volta, através. Hunde, como em... Noto que Víque dorme, cabeça encostada contra a janela, quase incendiada pelo sol, dorme, apesar de tudo, de mim, cabeça encostada contra mim, quase incendiada por mim, dorme. E penso que não lhe basto. Estranho afinal, Víque não estava cansada, Víque havia dormido bem antes da viagem, Víque ria de minhas piadas, Víque ria através da janela. Mas dorme e agora noto que enxergo melhor, o rosto amarelado e o cabelo liso caído, essa franja reta pela testa, os dentes que se sobressaem, um mais, outro menos, o ar que entra pelo nariz, através, o ar que sai. Avermelhada pelo sol, Víque já é quase poema, quase palavras, posso quase dizer, Ví-que, se o momento pelo menos durar mais, se pelo menos houver tempo, mais tempo, e as palavras se sedimentem e, quietas, imóveis, caladas, possam ser ouvidas, e penso na máquina fotográfica, que tiro do bolso e olho, através de sua lente, Víque, a boca caída de Víque (o ar que sai agora pela boca, essa quase palavra, esse quase monossílabo, esse quase estalo, esse diálogo concreto sem língua, tradutores, dicionários!), a janela, mato mato mato mato, o sol sempre lá, olho através de sua lente. E disparo. Vem uma fotografia tremida, uma mistura de Víque com mato, de mato com sol, de sol com janela. E disparo. Outra fotografia, a mistura agora também é outra, a boca de Víque engole uma cabra, que é pedaço do estofamento do banco da frente, a franja pende sobre o sol e o amarra, e tudo se borra, hunde como em borrar, e nada se vê, nada, está tudo ali, a minha frente, posso (quase) tocá-los, são quase palavras, seriam. E disparo, os dedos firmes sobre a câmera, o corpo preso ao banco, firmado pelo cotovelo sobre o encosto da cabeça. E já não é mais Víque, e já não há janela, a franja, reta, já não pende mais sobre a testa, já não há mais cabras sobre gramados esverdeados delineando a estrada, e já não há sono, ou talvez haja, e já não se fala portugês, castelhano, diabos, Víque, diabos, que raio de língua é essa, que raio? Hunde, como en hundir. O sol enfim termina de se pôr. Afinal também foge, como o mato, como as cabras. Do senhor do banco da frente, já não há mais a sombra no chão do corredor, resta a manga do moletom azul, escuro mas azul, apoiada na braçadeira do banco, sem sombra, sem espelho, sem costas ou cabeça, somente uma manga. Víque, acordada, já não vê através da janela. O ar lhe entra novamente pelo nariz, e seus olhos olham nos meus. Ou através. Antes. O que há, afinal, antes de mim? E o que haverá depois?


(*) Terceiro capítulo para livro, que atrasou e virou quarto capítulo. Seqüência (não necessariamente linear) de "Duro, frio e branco", ainda que seqüência não se note nenhuma. 

3.1.09

Duro, frio e branco

Primeiro eu:

Sentado no banheiro, estou cansado e minha mente me ensurdece. Tenho os olhos voltados para dentro já há dois dias, dois dias ao contrário, sou paisagem hipertrofiada de mim, sou redundância e já não me agüento mais. Fugo, e é para o chão, esse piso duro e frio e branco de cerâmica.

Segundo eu:

Dezoito quadrados brancos de cerâmica compõem o chão, frio e duro, branco. Não completamente branco, posto que são, ou estão, invadidos por minúsculos pontinhos pretos. Os pontinhos pretos são inúmeros, quase infinitos, seriam infinitos, se eu quisesse, se acreditasse. Na multidão, começo a procurar por alguém.

Terceiro eu:

Na multidão, encontro de perfil uma senhora, já de idade, veste um chapéu ou possui um grande topete, tem ar altivo, provavelmente pelo nariz, que se sobressalta, certamente não pelos olhos, que tenho mais dificuldade em encontrar, um olho não se vê, o outro é formado por um único ponto. Perco e reencontro seu olho a cada instante, de tão pequeno, e o confundo com outro pontos, e o reinvento, me forço a reinventá-lo. Com todos os seus olhos, porém, a senhora, de longe, olha fixamente em minha direção sem jamais piscá-lo. Ainda que a cada vez com um olhar diferente. Agora outro olhar, e me sinto outro

Quarto eu:

completamente estranho ao anterior, e ao anterior, e ao anterior. Já não sou mais redundância, sou especulação.

Quinto eu:

Meu problema é que me entrego demais às especulações. E me perco.

Sexto eu:

Retiro da senhora seu olho e ela agora é só nariz, chapéu ou topete, e talvez alguma boca. Uma imagem deformada, um estranho eufemismo para a alteridade, ou talvez eufemismo de mim mesmo, ora, posso no chão infinito reinventar o universo por inteiro, posso me reinventar, posso nele me esconder, e o que faço (realmente não imaginei chegar a esse ponto e talvez agora deva começar a me preocupar) é fabricar uma senhora de nariz sem olho e talvez boca para que não me veja. Talvez nem me fale. Algum tipo de ode bizarra da solidão. Basta mesmo o nariz, grande, para que respire. Talvez para que me sufoque, mas pode ser apenas piedade minha.

Sétimo eu:

Me passa pela cabeça agora perdê-la. Deve ser fácil. Basta piscar os olhos.

Oitavo eu:

Ainda está lá, nariz, topete, boca. Não sei como, mas sei que é ela. Poderia ser qualquer outra coisa, qualquer outro conjunto de pontos em qualquer outro quadrado de qualquer dos dezoito quadrados que formam este piso de cerâmica, branca, dura, fria, e ainda assim sei que não, que é aquele, é aquela figura, aqueles pontos, ela. Não a perco e não consigo entender como não a perco. Como eu entendo o que é uma coisa, e o que já não é mais, o que é jurisdição do teto, o que é jurisdição do chão, e porque eu não sou o chão nem o teto, e porque aquela senhora não é qualquer outra coisa? Como?

Nono eu:

Talvez eu não entenda.

Décimo eu:

Pisco novamente, agora mais longamente, e sinto o mundo desbotando, como memória esquecida, branca, fria, dura.

Décimo-primeiro eu:

Abro os olhos e procuro, lá não está mais a senhora, insisto com meus olhos que agora a perseguem, e não a encontram, e me desespero, e sinto que posso transformá-la em obsessão, e vejo um senhor, de bigode e que me olha sério, um cachorro com as orelhas levantadas, e vejo um palhaço, nariz de palhaço, boca pintada, fechada, e os perco todos até reencontrar a senhora, longo nariz e topete, sem olhos, agora uma boca maior e orelhas salientes mas é ela, sei que é. Ao seu lado, também de perfil, quase disfarçado por um aspecto sorridente que eu normalmente não reconheceria, estava eu, e era como um espelho, se ao menos fosse reflexo de algo.

Primeiro outro:

Agora me levantei e me pus a andar. Olho novamente para dentro, e já não me vejo mais. Aliás, já não sei quem é. Sei que move-se, segue pela sala e olha pela janela aberta. É dia, e pela rua vejo carros passarem, pedestres, um ou outro, esperando o semáforo. É dia, e é como um filme.

19.12.08

Sobre a torneira


E se eu te escrevesse agora com palavras de pia? Se eu saltasse de cima da ponte galáctica de poeira cósmica, do viaduto que cruza Orion, de um lado a outro, para debaixo do teto, branco, piramidal que me esconde em dias nublados, ou azuis, ou roxeados, ou quando foge, ou se parece noite. E se eu tropeçasse ao invés de escrever? Palavras? O vento. O vento, O vento que já tanto te soprei, instituição que contratei para te arremessar poesia, quilômetros e quilômetros, vento como meio de transporte para a metáfora, serviço postal dos telegramas cósmicos e dos intergalácticos, elo de conexão entre eu e talvez o teu rosto, tu e talvez o meu rosto, departamento nacional do trânsito da paixão e seus calores, igreja da compressão do espaço e implosão da matéria que não importa para a humanidade, ou seja nós mesmos, ou seja, a humanidade, eu e você no altar orando para nós mesmos e pelo sacrifício de nós mesmos para e por nós mesmos, revolucionário dos estudos cartográficos mundiais, redesenhista do traçado Brasília-Goiânia, não mais hifenizado, não mais fronteira, não mais metrópole, não mais sertanejo, não menos, nem Brasília, Planalto, Central, BR-, Anápolis, BR-, Goiânia, nenhum aonde.
— Uma passagem, por favor.
Esse mundo, essa coisa, essa hipérbole de nós mesmos, é tão feito de palavras de pia, tanto de pia quanto eu, quanto tu (imagino). E quando digo de pia, quero dizer de janelas mais ou menos emperradas, de escrivaninha de madeira descascada, pia, BR-253, de televisões em salas ao lado, Charlie Sheen esboçando em voz alta uma filosofia da vida prática, pia, minha porta fechada e que antes deixei encostada por simpatia pelo senhor da sala ao lado, ouvindo Charlie Sheen, pia, fechada ou aberta.
— Para onde senhor?
Esse mundo, essa coisa, essa metonímia de nós mesmos, e que decidiu sem maiores deliberações, ou representações democráticas, ou pressões partidárias, deste lado um poeta, daquele um prosador, do outro um senhor calado, do outro uma pia, decidiu univocamente (e com plena aceitação do mundo, nós mesmos), que a chuva te leva pedaços sinestesiados de mim e que o vento, o vento, o vento me traz teus sussurros agarrados a folhas de outono, e parece agora que, assim, portanto, logo, que a chuva não me molha se eu não me cuidar e não fosse o heroísmo da varanda do primeiro andar do prédio verde do bloco F, parece que eu não poderia ter me resfriado, ainda mais com o vento, e parece que não fugi covardemente da poesia, e que não me entreguei ao primeiro abrigo que encontrei, que não há prostituição atmosférica e, logo, que não há pia. Disparate.  
— Não para Goiânia.
A poesia torna o dia de hoje impossível. Indizível.
— Senhor, para onde?
Não. Um homem não pode se dividir assim. Indizível. Impossível.
Hoje.
Hoje acordei de um longo sonho, tentei me lembrar dele, de partes dele, do que me restava dele na mente, uma diretora de escola, travesti, eu preso, havia um regulamento. Senti a garganta seca, o mau hálito na boca. Tentei voltar ao sonho, mas não consegui, e podia ser mesmo a secura, e me levantei. No banheiro, o chão era frio e me arrependi dos pés descalços. Como estavam distantes os chinelos, optei pela pia, e pela água, e pelo chão duro, e pelo frio. A torneira gotejava. Sempre gotejava. Estava gotejando ontem, gotejava quando fui dormir, e teria de estar gotejando hoje de manhã, a não ser que se secasse a água de vez a água do mundo, de vez esvaziada pela minha torneira, a água do mundo no meu ralo. O som das gotas caindo, no ralo da pia, ecoavam pelo banheiro, e invadiam o quarto, e não me deixavam dormir, e quando deixavam, serviam de percussão aos meus sonhos, ploc, ploc, ploc. Talvez eu tivesse sonhado com isso mesmo, eu preso, a diretora, e o ralo como trilha sonora daquilo que sonho. Ploc, ploc, ploc, abri a torneira e enchi o rosto de água, fechei a torneira e já não havia mais sonho, e a diretora, travesti, e eu preso, jamais passariam novamente pela minha cabeça, e o ploc, ploc, ploc do ralo da pia voltariam a ser, não mais, do que trilha sonora para a minha própria vida, realidade, meu dia. Hoje.
Impossível, indizível.
— Não para Brasília.
Para ti, ou para nós, decerto para nós, nunca houve hoje. Nos situarmos no tempo, no ontem, na semana, na outra, nos três ponteiros, o pequeno, o grande, o maior que se mexe, de novo, de novo, no depois ou no agora (até no agora), parece absurdo. Eu flutuo, pairo, o mundo lá embaixo, não só esse mundo-espaço, esse mundo-coisa, que minha flutuação vai além do tridimensional, latitude, longitude, não, olho para baixo e vejo minutos, olho, e vejo a madrugada, quase manhã, Orion amando Eos, olho, e vejo leite, uma caixa de leite, ao fundo de uma geladeira, a validade se expirando, lentamente, e vejo pessoas, expirando, e vejo a chuva chegando, e passando, e mesmo o vento, a tal instituição literária, mesmo o vento eu vejo de cima, junto com a chuva, que cai contra mim e ao avesso de mim. Nada me vê. Sou intransitável. De mim no mundo, esse mundo-coisa-instante de que te falo, só se vê sombra, minha sombra projetada por um Sol sabe-se lá escondido aonde, minha sombra projetada sobre o tudo e o todo, e sobre você, lá embaixo, debaixo de mim, e se antes você (ao menos) me visse por um binóculo, uma luneta, e que fosse côncava demais, ou convexa demais, e que fosse empoeirada, que fosse até mesmo um espelho, que fosse, mas não,
— não sei. Qualquer lugar.
pois que de mim o que via era mesmo a sombra, projetada por um Sol sabe-se lá aonde escondido, essa exibição do meu negativo sobre o mundo-coisa, sobre o mundo-instante, ou nem negativo, não bastava revelar-me, inverter-me, fazer um blow up imenso de mim mesmo e ter um eu fotografado em detalhe. Não, sombras não são isso. Nem são as sombras partes de um todo, meu todo, minha parte. Nem minha metáfora, não, nem um eu figurado, meta-narrativa de mim, não. Queria dizer que talvez pudesse ser, talvez fosse meu eclipse, eu eclipsado, pelo Sol, pela Lua, por um pássaro, um poste, melhor ainda um poste, ou prédio, coisas que costumam e que gostam de nos eclipsar no Dia-a-Dia. Dia-a-Dia. Dia, a, Dia. Que expressão! Não. O eclipse era do próprio Sol, eu na frente do Sol, tapando, me esfregando sobre o Sol. E você, lá embaixo, contemplava meu eu em branco, uma grande folha de eu, branca, preta, pronta para você, e para que você nela escrevesse aquilo que quisesse. E que me entendesse, como quisesse.
— Temos um ônibus saindo em meia hora (instante) para São Paulo (coisa), você quer?
Latitude, longitude, impossível, indizível,
— um homem não pode se dividir assim. A realidade e a poesia são demais para um só homem. Nem Brasília, nem Goiânia. Não há o que dizer. Não há 
Impossível, não diga!
— Tem algum banheiro por aqui?
Disparate.
Entrei, e o banheiro era sujo o bastante, nem pouco, nem demais, e a torneira, entreaberta, pingava, ploc, ploc, ploc, e eu mal podia escutar os ruídos da rodoviária, ensurdecedora, quem diria. Ainda teria de esperar por vinte minutos antes de entrar no ônibus e não fazia idéia, idéia, de como passá-los, idéia, parecia absurdo, vinte minutos, olhei para o relógio, o ponteiro pequeno apontava o seis, o grande, o quarenta e cinco, enquanto o terceiro se movia mais rapidamente, quatorze, quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois, e parou.
(*) Segundo capítulo para livro. Seqüência (não necessariamente linear) de "18:45".

28.11.08

18:45

Fiquei olhando para a grande imensidão de chão cinza que me rodeava e me fazia como que ilha. Mas ilha de quê? Um grande pedaço de carne humana cercado de chão por todos os lados, até por baixo, que era o chão mesmo cinza que me segurava, e então eu já não era mais ilha, e nem me afogava. A entrada para o cinema formava um cubo megalomaníaco, teto, chão, teto, parede, uma dessas grandes bolsas de concreto da capital federal, a vidraça, o letreiro, o azulejo solto, o pequeno buraco no chão de nome Latour, o segundo era o Vilar, não sei por que, mas eram milimétricos e eu só os via por estarem a alguns centímetros da ponta do meu pé e eu sentado a tempo suficiente para conceder-lhes uma ontologia, cosmogonias e pequenos monólogos, e tudo isso parecia ser parte da megalomania do cubo, um grande plano, era tudo parte do grande plano, o meio-fio, o fusca em fila dupla, eu, Vilar e Latour, até a multidão que não comparecia e o grande vazio cotidiano que se instalava e que fazia notar-se o próprio cubo, todos sempre programados para preencherem nossos respectivos espaços dentro do grande plano do cubo megalomaníaco.

— São seis e quarenta e cinco. Aliás, quarenta e três.

Tyu chegaria em quantos minutos? Vilar discorria agora sobre o olfato, o menosprezo do sentido olfativo pelo mundo ocidental, essa coisa onde se pode viver muito bem sem que se cheirem flores, mofos, manteigas, o ralo, mas que

— ora, culturas inteiras se formam por aí baseadas sobre o sentido do olfato. Me parece necessário que estejamos perdendo pelo menos alguma coisa aí.

O Vilar seria capaz de grandes conversas com Tyu, disse isso a ele, Tyu se impressiona facilmente com essas histórias, odores, filosofias dos sentidos, aquilo que tocamos, que nos toca, essa coisa impressionista que não se explica. Tyu era bastante impressionista, não no sentido que se dá a uma pintura impressionista, um poema, ou uma etnografia que deixasse de lado a população guarani para discorrer sobre o próprio etnógrafo, achismos acadêmicos ou algo do gênero. Tyu era impressionista no sentido mais egóico da coisa, de que explicava pela sensação e que portanto não podia explicar,

— são seis e quarenta e cinco. Aliás, quarenta e quatro.

era composta por um grande amontoado de idéias vagas e abstratas, pôsteres na entrada do cinema, vago, meus óculos, vagos, pedaço de chão quadriculado do boteco da 209, lindamente vago. Eu olhava para o lado e via o Latour, agora calado, ruminando qualquer coisa, não pude ouvir, enquanto o Vilar continuava a todo fôlego,

— é uma outra forma de comunicação essa, isso de usar palavras, esse totalitarismo das palavras, é uma celebração bisonha do racional. Não se pode verbalizar tudo, não se pode verbalizar

Passava alguém, de longe era Tyu, os cabelos encaracolados presos, a expressão ainda a se definir, o vestido, amarelo, agora mais perto, o vestido se alaranjava e o cabelo se desprendia e se encurtava, ainda podia ser Tyu, já se passavam tantos meses, porque não, mas Tyu se aproximava e se desfazia, se desmanchava como meteoro invadindo a atmosfera terrestre, se queimava com o atrito do ar, e chegava ao solo, se chegava, só como rastro, poeira cósmica, cinco bilhões de anos sopráveis. A moça de vestido avermelhado e boina na cabeça se aproximava, agora era parte do cubo gigante, se integrava à megalomania arquitetônica do projeto, preenchia e esvaziava o espaço simultaneamente, aquele vazio inelutável cujos esforços de invasão serviam-lhe somente de marca-texto. O encher, o preencher sendo marca-texto do vazio, um vazio manchado de amarelo-fosforecente, eu, Vilar, Latour e a moça agora de costas, mini-saia jeans, pedaços de vazio.

Latour e Vilar, vistos de perto, e de cima. Eram como restos de meteoro.

— São seis e quarenta e cinco. Aliás, quarenta e seis.

Latour agora se inquietava com as argumentações de Vilar, com o mundo não-verbalizável de Vilar, e que era também o mundo não-verbalizável de Tyu, esse não-mundo sobre o qual não se pode falar,

 — sobre o que não se pode falar, deve-se calar.

mas como não falar, o pôr-do-sol que avermelhava a grama do cerrado e a aspereza da parede do Instituto de Ciências Humanas resvalando contra as costas das mãos o atentavam, a árvore retorcida do jardim da Faculdade de Direito em busca do sol, o atentava, não podia, não queria, não resistia a tradução, a tentação de carregar as coisas do mundo na bagagem compacta que é a palavra, não aceitava, non, ça ne marche pas,

— sobre o que não se pode calar, deve-se falar.

A moça ou o vazio da moça observava os pôsteres que adornavam as vastas paredes de concreto do grande cubo retangular, do grande retângulo da entrada do cinema, da grande entrada do cinema cúbico. Aqui se via Grande Otelo, ali Hugo Carvana, mais para a esquerda, Dina Sfat, ao lado de Jece Valadão, e ali mais para cima acho que era Oscarito, ela agora está no Jece, anda um pouco mais, agora sim Oscarito, que olha para a nossa direção, olhos arregalados, e agora noto, todos eles, olham para a nossa direção, uns com o canto, outros de olho quase inteiro, nunca um olho completo, que olhar nos nossos olhos seria olhar nos olhos da câmera que representaram nossos olhos décadas atrás – pela imagem, preto e branco, a do Jece deve ser de setenta e pouco – e nos olhos da câmera não se olha.

— São seis e quarenta e cinco. Aliás, quarenta e oito.

Nos olhos da câmera não se olha, pensava também o Latour, agora mais calmo, agora o pequeno buraco no chão se associando com o relevo irregular do grande chão cinza, grande cinza do chão, para formar uma boca, fazer parte de algo maior enquanto Vilar ainda era o mesmo pequeno buraco. Pensava em uma imagem, grande tela de cinema, cinema grande de tela, uma senhora nordestina olhando para os olhos da câmera, encarando o Latour, no dia em que o Getúlio morreu lá na Bahia, eu fiquei cega aqui também, escancarando o Latour, ele às oito horas do dia, eu às oito horas da noite, carrega o mundo com os olhos, somente os olhos, não importam as palavras, Latour acuado na cadeira, olha para fora da câmera, desconcertado, qualquer fora, os olhos gigantes o esmagavam em toda a sua megalomania ótica que abarcava a tudo no mundo, olhos como bagagem compacta para as coisas do mundo, e era como se tudo estivesse lá para aqueles olhos, um plano, um grande plano, até mesmo ele, Latour, e eu, e o Vilar, e a moça do jeans, todos inseridos dentro daquele grande plano, talvez por ordem do diretor, como figurantes, ou para compor o cenário, que seja, o fato é que saíam da tela, os olhos deixavam a tela no momento em que olhavam para os olhos do Latour, que eram os olhos da câmera,

— se ela não tivesse cegado, ele às oito horas do dia, ela às oito horas da noite, e por isso, não estivesse olhando para a câmera, olhava para baixo, na diagonal, para a direita, e de qualquer forma, não olhava,

e Latour se sentava confortavelmente, mais uma vez, em sua poltrona imaginária.

— São seis e quarenta e cinco. Aliás, quarenta e nove.

            ***

            A moça da mini-saia jeans e do vestido, agora roxeado, seguia caminho, agora circular, através das várias quinas do grande cubo. Talvez por circular, e por ser um cubo, toda essa subversividade geométrica da moça, e ela parecia mais ser rebatida pelas quinas, mais do que andar de fato, por vontade própria. Mais inércia do que vontade, mais vício do que inércia, mais cubo do que círculo, e pensei então em olhá-la. Mas olhá-la mesmo, diretamente na câmera, o estonteante olhar nos olhos, o esmagador olhar nos olhos, queria cegá-la, ousar cegá-la, ou a ela ou a mim, ela às oito horas do dia,

— sobre o que não se pode cegar, deve-se olhar.

eu às oito horas da noite, era quase mesmo como um desafio, retirá-la do transe, roubá-la dos olhos do Grande Otelo, agora o Oscarito, Sfat, Otelo de novo, como dar fim ao vício, dar fim ao círculo, quase uma ode ao cubo, grande, cinzento. Latour e Vilar estavam agora calados, talvez um pouco em agonia, ou por cansaço, ou por tédio mesmo.

Aliás, Latour e Vilar, vistos de perto, e de cima. Eram dois pequenos olhos.

Iria esperar para quando passasse por perto de mim novamente, teria de passar por mim, sempre passara, eu era parte do vício, do cubo, do círculo, iria passar, com o olhar perdido como sempre, ou não, talvez atento demais, procurando por algo novo, um pequeno detalhe na parede que tivesse passado despercebido nas dezessete voltas anteriores, um novo ângulo possível de quina para voltar a ser rebatida e aí sob nova forma já mais trapezoidal, ou uma falha de continuidade, um anacronismo na cena do Jece Valadão com o Carvana jamais percebido, seu olho era livre, Valadão não lhe olharia de volta, nem o Carvana, e se libertava cada vez mais, e cada detalhe era cada vez mais seu, pequenos rabiscos na parede, juras de amor escritas na década de setenta, bituca de cigarro no chão, outra, o Latour, o Vilar, e de repente eu, visto de perto, dois pequenos olhos, esbugalhados. Virei-me. Ele às oito horas do dia, eu...

 — São seis e quarenta e cinco. Aliás, são oito horas da noite.

Virei-me. Não agüentei e virei-me. Disfarcei o atentado ótico com as vestes de uma passagem de olhos, panorâmica, uma vontade súbita de absorver o todo com um rápido movimento de pescoço, 180º, ela estava no caminho, fazer o quê, naquele momento ela era tão paisagem, tão parte do todo, quanto o grande chão cinzento, o grande cubo de entrada, o Grande Otelo. Talvez ela tenha acreditado, pouco importa. Vilar estava inconformado, me berrava ao ouvido, acabava comigo. Vilar não teria se virado, 180º. Vilar não é dos que se cegam. O Vilar abre os olhos,

— sobre o que não se pode olhar, deve-se cegar.

já eu não.

            Ia tentar de novo. Décima nona volta, ela vinha, mais uma vez, círculo do cubo, passava por Oscarito, Sfat, deixava para trás o carro de pipocas – abandonado, desde o início, esteve sempre ali, só agora o notei –, outra quina, agora parecia mudar seu trajeto ligeiramente, passava mais distante e já quase não valia mais a pena, mas não interessava, olharia ainda assim, em seus olhos, câmera, e seguia caminho, a bituca, a outra, o Latour, o Vilar, e de repente eu, visto de longe, dois pequenos pontos, talvez outras duas bitucas, esbugalhadas. Não me virei. Nem precisei. Acho que não me viu. Ou me viu, como via tantas coisas, inseriu meu olhar em seu caderno de notas totalitárias do grande cubo cinzento, e tinha lá todo um inventário, bituca de cigarro, Oscarito, eu, dois olhos, às vezes grandes, às vezes pequenos, às vezes abertos, às vezes não.

            Tyu também não teria se virado. Tyu nesse sentido era o oposto de mim. Aliás, era o oposto de mim em muitos sentidos. Tyu não inventaria Latour e Vilar, nem sequer os teria notado (aliás, é interessante como não se virar não significa necessariamente notar). Teria notado o carro de pipocas muito mais cedo do que eu, isso certamente. Mas também não conversaria com o carro de pipocas, ou com o pipoqueiro, que de qualquer forma, não estava lá. De novo, e eu já disse, não palavras, imagens. O carro de pipocas de Tyu não seria dizível, verbalizável, não sairia pela boca como o meu. Seu carro seria uma cena, complexo de imagens em seqüência mais ou menos linear, antes com o pipoqueiro, depois sem, e ficaria somente ele, ali, parado, outro vazio, ilha cercada de mim, Latour, Vilar, Tyu, e a moça do vestido avermelhado, por todos os lados. E de repente se notariam sobre a prateleira do carro três pequenos sacos de pipoca, já cheios, como que prontos para serem vendidos, três sacos, e nada mais, nem dentro, nem fora dos sacos, como se fosse essa sua expectativa para a noite, público contado, éramos eu, Vilar, Latour, Tyu, a moça do vestido alaranjado, cinco no total, um ou dois sem fome, outro sem dinheiro, éramos três sacos de pipoca. E para Tyu, seria poético, não sei se um poético melancólico, ou um poético kitsch, o pobre pipoqueiro, pipoqueiro pobre e cinzento, que nem estava lá, ou um poético colorido (só agora noto que é vermelho o carro, a Tyu adora o vermelho, vermelho não é palavra, nem é dizível como palavra, gostava do vermelho como olho, vermelho como cor que olha para a câmera), mas de qualquer forma, enfim, um poético que não está nestas poucas linhas, e nem estaria em muitas, mesmo em um longo e absurdo soneto, não, o pipoqueiro não se renderia, jamais, a essa minha obsessão, esse autoritarismo da palavra que a tudo quer render, materializar, guardar em bolsos, meus ou alheios. Para Tyu, o pipoqueiro ou o carro de pipocas jamais seriam meus. A moça do vestido amarelo agora também olhava para o carrinho. Agora, de costas, parecia-se muito com Tyu. Também, já se passavam tantos meses, Tyu para mim se desmanchava, como meteoro invadindo a atmosfera terrestre. Arrisquei-me.

— Moça, por favor, você tem as horas?

— São seis e quarenta e cinco. Aliás, são oito horas da noite.

Latour e Vilar, aliás, vistos de perto, e de cima, eram crateras.

11.11.08

Informações pessoais


"Tiende a vestir de negro, de gris, de pardo. Nunca se lo ha visto con un traje completo. Hay quienes afirman que tiene tres pero que combina invariablemente el saco de uno con el pantalón de otro. No sería difícil verificar esto".

Sou do Rio de Janeiro, filho de mãe cearense com pai gaúcho, que trabalhava com análise de sistemas até ser chamado para a guerra do Golfo, de onde nunca mais voltou. Minha mãe era solteira e me criou sozinho em um casebre em Ipatinga no interior de Minas Gerais, onde em geral vivíamos de uma pequena porção de dois pães de queijo diários que recebíamos em troca de mão-de-obra em uma plantação de cana-de-açúcar, de onde fugi aos doze anos para virar trapezista infantil em um circo finlandês que fazia um tour pela região rumo a Jacarepaguá. Lá encontrei meu pai que era contador e que foi quem me ensinou várias formas de burlar a receita federal que utilizei incessantemente até os trinta e dois anos, quando fui delatado por uma garota moçambicana que conheci em um vôo para o Marrocos e com quem me casei dois dias depois, após cinco anos de noivado em que adiamos nosso casamento inúmeras vezes devido a guerra dos Bálcãs ou por causa da chuva. Fui caminhoneiro na península ibérica durante a adolescência levando carregamentos de munição bélica para uma empresa ucraniana clandestina de produção de confetes coloridos da qual minha mãe foi CEO por cinco anos e meio. Passei minha infância no norte de um país da ex-união soviética do qual agora não me lembro o nome e vim para o Brasil somente a três meses atrás, e desde então venho tendo aulas de português intensivo com enorme sucesso, praticando diariamente através de cartas poéticas que troco com uma paixão minha de Goiânia que jamais vi, e que conheci no meio de uma multidão em um concerto de Philip Glass no sul da Austrália dois meses antes de nosso primeiro beijo em um bar na beira de uma rodoviária federal ao sul do Amapá onde ela ganhava alguns trocados como vidente e previu que eu morreria de morte violenta no dia 2 de agosto de 2089 logo após terminar meu bacharel em Antropologia pela Universidade de Brasília e provavelmente por efeito de drogas alucinógenas que havia tomado na noite anterior para escrever um grande livro de 734 páginas que dedicava inteiramente a uma garota que havia conhecido em um grande jardim de pés de figo na França e que vivia de esmolas que recebia de descendentes diretos da aristocracia do Faubourg Saint-Germain e que servia para sustentar seus sete filhos e mais uma mansão ao sul do país. Passei onze anos e sete meses da minha vida alimentando-me somente de chá preto e biscoitos até que resolvi comer cinco pizzas de calabresa com anchovas sem razão nenhuma. Sou vegetariano desde que me formei em agronomia em Bratislava e desde então tenho mantido no quintal de casa uma plantação de praticamente tudo o que se pode comer e que vai até mais ou menos o horizonte ou aquela região onde a vista alcança. Uma vez fiquei sem palavras por não saber como utilizá-las se não fosse em forma de soneto. Sou exatamente quem você pensa que eu sou. Semana passada, passei cinco dias e meia hora escrevendo longamente sobre um muro de uma mansão no sul do Mato Grosso do Sul até que todas as frases estivessem sobrepostas de tal forma que formassem um imenso muro negro ônix. Um dia, já fui ninguém, por quatro ou cinco horas, até que isso passou e agora só volta esporadicamente, quando esqueço de me medicar. Passei vinte e poucos anos, ou foram trinta, isolado no topo de uma montanha muito muito alta em um cume nevado ao leste de um desses países de forma trapezoidal para filmar um documentário sobre o restante do planeta e a vida de todos os seres humanos, a exceção de uma pessoa no centro-oeste brasileiro sobre a qual nada sei. Desde que voltei, tenho trabalhado em uma fábrica de barbantes coloridos no noroeste do Chile a cinco pesos e meio por mês onde passo o tempo conversando com uma operária equatoriana sobre os últimos desdobramentos do movimento de translação de Óreon em relação a via láctea e desde então tenho tentado com pouco sucesso saber mais detalhes de sua vida pessoal fazendo uso somente de vocabulário astronômico, dado meu conhecimento parco de língua quéchua. Fui feliz em nove de dezembro de 1952, mas desde então isso tem sido raro. Trabalhei como secretário de Lech Walesa na Polônia e escrevia todos os seus discursos e falas desde os seus sete anos de idade até ser demitido por deixar mensagens subliminares sobre mim mesmo em meus próprios discursos e que levariam a um golpe estatal meu sobre a minha pessoa. Recebi ontem a penúltima edição do Correio Braziliense antes do fim da série, mas já imagino que o mocinho morra no final. Passei a infância assistindo televisão no canal de teste de cores todas as manhãs antes de ir para a escola e desde então tenho dificuldades para respirar quando não estou diante de um arco-íris. Um médico neozelandês detectou em mim uma doença congênita que me levará a morte em cinquenta e oito anos pelo excesso do uso de vírgulas no meio das frases. Trombei contigo hoje no café da manhã, por isso a mancha na sua blusa. Cursei artes cênicas na Bélgica por sete anos e cheguei ao auge da minha carreira participando dos três filmes da trilogia das cores do Kieslowski fazendo o papel da idosa que era incapaz de jogar o lixo no lixo durante o curto período de cinco segundos em que aparecia, sendo que cerca de 203 pessoas no planeta tomaram conhecimento de que a cena se repetia nos três filmes, isso ao menos de acordo com os dados atualizados até ontem. Faço bolinhas de papel e jogo para o alto para saber aonde vão cair, às vezes provocando acidentes aéreos como os da semana passada, que deixaram três milhões e meio de mortos e uma pessoa se molhando apesar do guarda-chuva, mas parece que ela não se importa. Minhas canetas costumam secar antes que a tinta acabe. Neste instante há uma parede branca em minha frente. Não sei o que há atrás de mim, mas vou olhar.

23.10.08

A chuva ou o que se vê entre pessoas e um toldo verde

"Vos no elegis la lluvia que te va a calar hasta los huesos quando salís de un concierto".

Tem essa figura que me atormenta hoje já a horas, um casal ou seriam talvez só amigos, não sei, estão de mãos dadas, pressuponho que sejam um casal, um casal e um toldo, desses verdes de padaria em que não se entra para comprar pão pois nem se sabe que a padaria está lá, o cheiro do pão não se desprende e flutua com o ar àquela hora da tarde e de qualquer forma, só estão ali pelo toldo. E a chuva. Que chove. As pessoas que andavam calmas, lentamente pela praça - agora vejam só que percebo que a tal imagem se dá perto da Praça da Sé, que a chuva também molha o Viaduto do Chá e os chafarizes que bom, sempre molhados, chovem para cima e para baixo em conformismo - agora mudam de passo, e se apressam e correm como se todos estivessem atrasados ou se a chuva molhasse os minutos e agora, com vinte e cinco úmidos minutos, mal dá para fazer seis ou sete. Mas isso eu até entendo, e perdôo, que parece que é isso que as pessoas fazem agora, nem que se perdoe com processo na justiça e indenização milionária e que em última instância seja culpa do sistema, mas perdoai-vos, eles não sabem o que fazem e agora tá ali o tempo todo molhado. Não, eles eu não culpo. Culpo os outros que já estavam apressados - ali o seu Silveira correndo com a valise preta de couro nas mãos de quase sempre, cena grotesca, o Silveira e a poça dágua, a água voando, o Silveira e as gotas dágua voando, agora eles se encontram, gotas dágua e um pouco de barro nas calças de veludo do Silveira e agora o pássaro voando assutado -, os que já estavam apressados e que agora pararam, um paradoxo, pararam, e entraram nos mercados, ali na venda de sorvetes - o Silveira pediu um de morango e baunilha agora, está se sentando mas não pegou o trocado -, outro na lotérica, não ganhou, nem apostou, tem um ali que vinha quatro, cinco passos para cada dois ou três chãos, já estava prestes a decolar, ganhando altura, o nariz embicando para o céu, e aí foi a gota dágua cair no nariz embicado que desequilibrou a coisa e que sete mariposas passaram naquele instante formando uma forma geométrica absolutamente revolucionária para as pessoas que se importam ou são formas geométricas, e que não posso descrever porque o senhor do vôo abortado preferiu o chão, e depois a padaria aqui atrás do nosso casal, ou talvez tenha simplesmente adotado o toldo verde.

E a rua enfim ficou vazia.

Parece que agora sou eu quem tem que escrever sobre isso. Bom, o que posso falar do toldo verde é isso, que está manchado, ali quase na ponta esquerda tem um buraco de onde agora a chuva se cachoeira, agrupamento de gotas este que chocou deveras os poucos focos de resistência da secura local que ainda lá restavam, e na outra ponta tem uma beira de toldo que costuma passar o tempo, quando não colhe esses derramamentos esporádicos de céu, segurando folhas secas que se jogam de quando em quando de uma árvore de lá de cima que de vez em quando caíam e era de tanto bater e se esfolar contra o toldo azul escuro do quinto andar.

Dizem aliás que uma imaginação absurda e ainda inexistente desse lado de cá do universo, quando fosse juntar esses quandos de folhas secas caindo com outros quandos duas semanas depois de outra folha seca caindo, e assim por diante de quando em quando, teria uma percussão absolutamente aleatória de sons que se encaixariam em algumas músicas do segundo álbum do Velvet Underground, principalmente a dois e a sete.

Claro que agora são folhas molhadas.

Debaixo do toldo, tem duas pessoas. O outro senhor definitivamente preferiu a padaria e os pães da padaria, e o pacote marrom papel que faz barulho de padaria.

Agora um guarda-chuva cobre as duas pessoas e não posso mais vê-las - sim, às vejo de cima, entre o toldo e as duas pessoas ou, agora, entre o toldo e o guarda-chuva. Imagino que esteja dependurado no teto do toldo, suspenso por algum tipo de corda ou algum gancho despropositado que me serviu de apoio, demonstrando uma força descomunal para um toldo que, lembrem, já estava parcialmente rasgado.

Vejo mãos se chacoalhando para os dois lados. De um lado, com uma manga branca listrada, camisa social e mãos peludas, do outro manga de moletom verde claro, pele mais escura e menos agitada e, mas agora desce de volta e já não a vejo. Suspeito que ainda sejam duas pessoas.

A chuva cai mais forte. Agora são folhas despedaçadas. 

Estou nesse momento planando sobre a rua terminantemente vazia. Ao longe uma padaria e um toldo verde e um casal que agora vem correndo na minha direção. Nas mãos um guarda-chuva, e balança de um lado para o outro. A água entra por vários furos e chove uma chuva única e personalizada, com gotas mais grossas do que o normal, mas que caem mais lentamente, em lenta câmera - vejo meu reflexo em uma delas, estou acenando, a gota me acena de volta, eu de novo, agora não mais - dando tempo para que o cérebro perceba a primeira, no ombro, agora a segunda, na cabeça, escorrendo pelos fios de cabelo e indo de encontro com a outra do ombro, agora outra por detrás da orelha do outro lado. Verdadeiro conta-gotas imaginário, uma dessas maravilhas da mente. Daqui a trinta segundos já serão dezesseis gotas. Não chuva. Gotas.

Afinal, é a contagem que separa uma da outra. Sincronia perfeita de eu com nuvem.

Não-chuva. Gotas.

Continuam correndo cada vez mais para perto de mim. Agora chegaram, passaram direto, mas ainda posso vê-los. Cada vez mais solitários e quase desaparecendo no branco de neblina que se forma mais a frente, que nem o Viaduto do Chá mais eu vejo. Vai ver já nem é mais São Paulo. Ele já desapareceu, a manga verde, a chuva, mal guardada, e que se perde por aí até o próximo colecionador passar ou o Sol.

Novamente o vazio da rua. Nem apressados, nem os mais calmos. Vários vultos preenchem os tetos. Na neblina, um casal vive provavelmente a maior emoção que viveriam pelos próximos seis meses e doze dias, além de alguns segundos.

23.9.08

O Mainá e o chinês solitário


Na China, um senhor de classe média de uma cidade de porte também médio, ao leste do país, resolveu adquirir um Mainá, ave típica local e que, dizem, consegue imitar sons tão bem quanto papagaios.

O solitário senhor, já de meia-idade, misantropo primeiro por medo de rejeição, depois por segurança, mais tarde por hábito e agora, enfim, por tradição, fazia mais uma tentativa de substituição do contato humano. Afinal, não era avesso aos diálogos. Era capaz de travá-los longamente consigo próprio. Não monólogos, diálogos, no sentido estrito do termo. Uma arte, dizia ele mesmo, que se considerava capaz de simular inúmeras personalidades dentro de sua própria mente, capazes de conversarem entre si, exporem longos argumentos e defenderem posições ideológicas inteiramente antagônicas de tal forma que ele próprio se sentia muitas vezes incapaz de tomar partido de uma ou de outra.

Agora, o solitário chinês alimentava novos projetos, especialmente depois de ter se encantado com uma conversa instigante que tivera com um pombo de rua em uma simulação inusitada que fizera em sonho, durante uma noite mal-dormida. Acordou inspirado, e desde então colocou na cabeça que não só queria, como que seria possível ensinar uma de suas personalidades, parcialmente ou por completo, a um pássaro, como quem ensina mandarim a um papagaio. Em princípio queria mesmo um pombo, que demonstraria o aprendizado através de manifestações corporais, como um bater de asas que refletisse esse ou aquele humor e, de fato demorou a ser convencido de que uma ave falante poderia se expressar com muito mais desenvoltura do que um simples pombo com gestos abstratos e uma vontade questionável de aprendizado. Contudo, como a loja de animais somente teria papagaios em duas semanas, decidiu-se enfim pelo Mainá.

Desde o primeiro dia, seu novo proprietário começara suas primeiras aulas. Teria uma personalidade semelhante à do pombo do sonho, com quem havia tido uma longa conversa sobre a filmografia de Michelangelo Antonioni. Ele falava de forma polida, mas com um orgulho de fundo que se manifestava quando se indignava com as motos demasiadamente ruidosas que entravam pela avenida vizinha e que, de meio em meio minuto, insistiam em interromper bruscamente a conversa. O plano didático incluía longas discussões com o Mainá sobre o cineasta, nas quais ele próprio faria o papel do pombo, que o Mainá deveria imitar, e Os débeis sucessos da primeira semana serviram somente para que o velho chinês intensificasse suas aulas e, ao término da segunda semana, passava quase que a totalidade de seus dias incorporando mentalmente a personalidade do pombo dos seus sonhos. 

Ao término das duas semanas, o Mainá já possuía um vocabulário expressivo. Havia praticamente se transformado em uma enciclopédia do cinema novo italiano, e estava prestes a memorizar o elenco completo de 'Blowup'. Muito mais, sem dúvida, do que poderia imaginar o vendedor da loja de animais, ou qualquer estudioso das aves que tivesse algum mínimo conhecimento das limitações naturais das aves Mainá. Mas para o solitário senhor chinês, o que se via era somente um pássaro memorizando e repetindo palavras, quase que aleatoriamente, sem se preocupar com sintaxe e muito menos com características de personalidade e, quando voltara a loja na segunda à tarde resoluto a comprar dois de quatro papagaios que haviam chegado de navio da Nova Guiné na noite anterior, teria mesmo devolvido o esforçado Mainá não fosse a recusa tão veemente do vendedor em aceitar de volta a ave, já que, afinal, não seria possível revendê-la agora como se fosse nova um animal que já tinha adquirido um vocabulário tão extenso. Aceitara enfim que teria que trazer o Mainá de volta. Porém, posto que seu entusiasmo com a dupla de papagaios agora era grande, a rejeitada ave chinesa acabou esquecida em uma gaiola improvisada com um caixote de madeira que, outrora, havia sido recipiente de frutas exóticas que trouxera em uma de suas raras viagens pelo país - de fato, para uma pequena cidade a poucas dezenas de quilômetros de onde morava - e que somente deixara na sala de estar com os novos residentes da casa por medo de acabar deixando-o morrer de fome no sótão, esquecido entre outras quinquilharias que lá guardava justamente com o propósito de garantir para si próprio que seriam devidamente esquecidas.

Ao contrário do Mainá, que do primeiro dia ao término da segunda semana de aulas sempre parecia mais fazer o tipo do aluno esforçado do que o de um estudante entusiasmado, os papagaios neoguineenses fizeram grandes demonstrações de excitação desde o primeiro instante. Falavam mais do que seu proprietário, conversavam mais entre si do que com seu proprietário e aprendiam mais um do outro do que daquilo que lhes ensinava o seu proprietário. Falavam dia e noite, falavam um na vez do outro, falavam na vez do proprietário falar, e falavam até nos raros momentos em que tentava se pronunciar o recluso Mainá, que por sua vez tentava silenciá-los com uma ou outra das muito poucas falas de Marcello Mastroianni em 'A Noite'. De fato, os papagaios mal ficavam em silêncio para comer, alternavam-se durante o sono, travavam longos monólogos consigo próprios enquanto o vizinho dormia e só se calavam realmente quando o gato de uma casa ao lado miava de fome, uma hora no almoço, outra hora no jantar.

Ao término de duas semanas de aula, o velho solitário estava exausto. Se antes com o esforçado Mainá, havia se disposto a se transformar por completo em pombo-cinéfilo pelo bem da alta educação que deveria receber a jovem ave, agora, com os falantes alunos que trouxera da Nova Guiné, já não conseguia mais ser pombo, já não era mais ele próprio, nem nenhuma de suas milhares de personalidades. Sua mente estava vazia. Ele era o que eram os papagaios. Invadiam sua mente e suas idéias com seus longos debates - que eram realmente sobre qualquer assunto que lhes desse na telha - e o velho, acostumado a longos solilóquios durante décadas de sua vida, provavelmente ouvira naquelas semanas mais do que durante a vida toda. Mal conseguia dormir, e nos curtos silêncios provocados pelo ruidoso gato da vizinha, ele próprio preenchia o vazio de sua mente, como que por inércia mental, com reproduções das conversas de seus animados colegas de apartamento. Sua fadiga a essa altura já era tal que, no primeiro dia da terceira semana de convívio com os papagaios, as nove e quarenta e cinco da manhã, não teria notado nada de estranho no silêncio da casa com o miar de todos os dias, e nem teria percebido que ele já perdurava muito além da normalidade não tivesse sido capaz de estranhar, algumas horas depois, a existência de um segundo miado. Como se retornasse a uma consciência própria pela primeira vez após três semanas, notou surpreso que ainda era pouco mais de meio-dia, e que o primeiro miado havia começado horas antes do que seria o já habitual miado da hora do almoço. Enfim, percebeu que um dos miados era mais forte. Vinha de dentro da casa. Tentou então aproximar-se, aguçando os ouvidos. No caixote de madeira velho, estava lá o jovem Mainá. Tinha os pêlos assanhados de muitas noites mal-dormidas. Nos olhos, trazia um certo tom avermelhado, que um bom veterinário poderia identificar como se tratando de algum tipo de irritação causada por um longo estresse mental. Com sua voz, imitava o miado do gato com uma perfeição que enganara até mesmo a dona do animal na casa vizinha, que estivera a beira de dar-lhe comida antes da hora, e somente se conteve ao ver que o tal ainda dormia, quieto em seu canto, voltando aos seus afazeres maldizendo os maus hábitos dos gatos alheios. Os papagaios, por sua vez, mantinham-se em silêncio religiosamente como que em respeito sacro ao canto de martírio que parecia não mais se cessar. O Mainá sustentou o quanto pôde o miado que se esforçara por memorizar no decorrer de duas longas semanas. Mal se lembrava do que havia aprendido em suas aulas de cinema italiano, provavelmente jamais voltaria a falar em Antonioni ou Mastroianni e apenas esperava que o silêncio, que agora cantava com a própria voz, se prolongasse para além de suas forças para continuar miando, e que pudesse ainda reverberar por um longo tempo pelas paredes da casa, do caixote de madeira, e das jaulas luxuosas de metal dos dois papagaios neoguineenses.