25.1.07

O Barco de Papel

Esqueci de avisar que também escrevo contos. Ou, ao menos, conto aos outros que escrevo contos. Escrevi este nesses últimos dias, baseado nas minhas experiências recentes em Toronto, Canadá. Não sei se está pronto mas, por outro lado, nada está.

O Barco de Papel

Acho que às vezes a realidade simplesmente não me é suficiente. Não raramente, frustrado talvez com minha própria incapacidade de tocar o real que existe no mundo – como se o real fosse o representante da poesia no cotidiano – me encontro observando, com os olhos fixos, essas pitadas de realidade que o passo distraído do mundo nos dá, em seus quandos-em-quandos. No fundo, acho que não se trata de mais do que uma tentativa de auto-ilusão, acreditando ingenuamente que o simples ato de retirar a mim mesmo da distração hipnótica geral das manhãs de terça-feira far-me-ão tocar a realidade mais do que a letargia mental na qual antes me encontrava.

Talvez essa impressão seja dada pela sensação curiosa que esses momentos geralmente me passam. É como se estivesse a abrir os olhos, mesmo sob ordens supremas de mantê-los fechados, e me deparasse com uma multidão de pálpebras perfeitamente cerradas, seja por obediência complacente, seja pela esperança de um último retorno ao sono, antes de mais um dia de trabalho. É incrível, aliás, como a melhor forma se superar-se o tédio da sala de espera que é um ônibus ou um metrô – esses espaços de lugar-nenhum que invadem nossa existência com o único propósito de dela saírem o mais rápido possível –, pode ser muitas vezes a própria transformação desse tédio coletivo em espetáculo pessoal. O bocejo desinteressado do garoto olhando a neve caindo pela janela, o olhar semi-morto de um homem para lugar algum sem perceber que o terror de seu rosto não condiz com os pensamentos banais que passam por sua cabeça, ou a mulher que passa toda a viagem do metrô sem virar a página do livro que imagina estar lendo.

A meticulosidade de uma dessas mulheres uma vez me chamou a atenção. Ela tinha entrado no vagão do metrô com sua filha pequena segura pela mão, uma mala relativamente grande dependurada no pescoço cuja grife esportiva não parecia compatível com as roupas nem com o porte físico relativamente frágil da mãe, enquanto a outra mão se segurava à barra metálica do metrô, com o esforço reduzido possibilitado por anos de prática. Parecendo inconformada com a idéia de fazer do momento de locomoção entre um lugar real e outro lugar real – esse meio termo que forma o não-lugar – uma mera sala de espera, reduzindo-se com a massa à letargia de quem pausa à vida como a um filme, resolvera transformar o pequeno mundo em que se encontrava de pé com a filha no vagão relativamente lotado em uma sala de café-da-manhã. Retirava de sua mochila pedaços de pão e bolachas de potes especialmente preparados para tal ocasião, e o fazia com um cálculo de tempo e de movimentos de quem passou toda uma vida realizando aquele ritual pragmático. Segurava mais de um pacote entre os dedos da mesma mão que mantinha seu equilíbrio, enquanto usava a outra mão para alimentar a filha ou abrir a mala esportiva. Quando necessário, largava a barra metálica em momentos calculados, de quem parece ter nas mãos o controle do freio e da aceleração do próprio metrô.

Na saída, precisávamos andar rapidamente por uma longa escadaria para pegar a conexão com um segundo metrô em outra linha. Chegando à estação, lembro-me de não tê-la visto e, assim, imaginado que deveria naturalmente se demorar pois que carregava consigo toda a lentidão do peso das malas e da filha pequena. Vendo, porém, que o metrô levava alguns instantes a chegar, pensei mesmo que talvez ainda houvesse tempo para que as duas chegassem. Mas essa esperança se desfez em alguns segundos, com a visão das luzes do trem invadindo a estação, como de costume. Ao abrirem-se as portas para a entrada dos passageiros, dei uma última olhada para a boca da escadaria, na esperança de vê-las, em meio à multidão de passageiros atrasados, correndo exaltadamente com suas malas para alcançar o metrô. Ora, qual não foi a minha surpresa quando meu olhar topou, tão rápido quanto na instantaneidade de um susto, com a chegada de ambas que – destoando da massa que corria para não ter que ver sua sala de espera diária aumentada em mais dez minutos – se moviam calmamente, com o mesmo ritmo meticuloso e calculado de antes. Embarcaram no vagão dois segundos antes das portas se fecharem, sem que, por um único momento, parecessem ter se equivocado em seus cálculos diários.

Mas o cotidiano sonolento das salas de espera matinais jamais me pareceu tão próximo de esbarrar na poesia de sua camada mais profunda de realidade quanto o fora ontem. Encontrava-me sentado em um ônibus, quando, olhando para os lados em um de meus surtos de déficit de realidade, eis que deparo-me com uma garota asiática, por volta de seus onze anos, que se distraía fazendo um barquinho de papel. Não sei se foi a beleza da simplicidade do ato, ou se foi seu contexto que me cativou. Abro aqui um pequeno parênteses. Acho que quanto mais envelhecemos, mais o tempo transforma as pequenas belezas em grandes redundâncias. Não há espetáculo que resista a sua repetição constante, quase diária. Passamos a vida tentando superar a redundância, buscando no detalhe quase invisível, microscópico – literalmente, às vezes –, a beleza do jamais visto, o famigerado ‘novo’. Assim, se um ônibus pode ser considerado como um espetáculo auto-suficiente em sua primeira visita, transforma-se facilmente em redundância após seu uso quase diário, de modo que tentamos superá-la, seja por meio de aparelhos portáteis de som, seja por livros ou jornais, seja por meio do espetáculo de nós mesmos, em nossos próprios pensamentos. Mesmo essas pequenas saídas, porém, nem sempre são suficientes. A vida às vezes parece se transformar em um esforço diário pela criação do novo, e o mundo volta a sua existência para a função tão fútil quanto poética de causar espanto e estupefação em seus habitantes distraídos. O fato é que não haveria redundância sem a lembrança. A memória destroi a poesia.

A garota do barquinho, em seus ainda onze anos, provavelmente ainda não via em sua vida uma redundância tão grande quanto alguém de vinte. Se dava por satisfeita com o barquinho. Acho que a beleza da cena para um adulto está em ver justamente essa transformação, como que mágica, do simples em fantástico pelas mãos de uma criança. Eu mesmo, que nunca fui muito de me deixar cativar pela beleza fácil das crianças, achei mesmo sedutora a idéia de tentar capturar os olhos da garota, como que se eu pudesse assim apagar da minha memória todo o entulho de redundâncias que me impedia de enxergar o barquinho de papel enquanto barquinho de papel – ao invés de simples parte componente de um cenário temporário da minha vida por onde meus olhos passam, e não param. Continuo então a observá-la e, então, quase derramo lágrimas. Ela havia colocado o barquinho, cuidadosamente, no braço da cadeira do ônibus, deixando-o lá como a um enfeite em uma casa. Era como se percebesse, com uma sensibilidade do tamanho de um poeta morto, que todo o tédio do mundo se encontrava ali, naquele ônibus, que agora tentava ressignificar completamente com o único espetáculo que podia proporcionar. O barquinho de papel representava o fim da redundância. Ficaria lá, repousando serenamente nas marés do trânsito canadense, servindo de fogos de artifício para os olhares desatentos e incrédulos de quem anda nos ônibus da cidade de olhos fechados com pálpebras abertas, preparado para ver o mesmo ônibus, o mesmo banco, a mesma multidão com os mesmos traços genéricos. O barquinho parecia uma arma atômica na guerra contra a distração, passo primeiro em direção ao inédito. Tinha a impressão de que o mal-estar da sala de espera havia sido tamanho para a garota que, tendo encontrado no barquinho sua brilhante solução, sentia a necessidade de compartilhá-lo com o mundo ao seu redor. O pedaço de papel ali repousaria para a contemplação da eternidade.

Ao chegar em sua parada, a garota levantou-se. Amassou nas mãos o barquinho de papel e desceu os dois degraus do ônibus de forma automática. Uma mulher alta, de meia-idade, sentou em seu lugar e, prevendo uma longa viagem, tirou um livro da bolsa. Não me interessei em ler o nome.

Toronto. Janeiro, 2007.