11.4.10

Primeira tentativa de controle do tempo


O tempo passava.

Queria ouvir um relógio, para ouvir o tempo passar. É difícil acreditar em um tempo que passa, assim, em silêncio.

Procurei ao meu redor, mas não encontrava nada. A praça estava deserta. Não usava relógios de pulso desde que entrei na faculdade, me apertavam, atrapalhavam o sangue que queria passar, que passavam nervosamente pelas veias do meu corpo nos momentos de angústia, e que passavam nervosamente pelas veias do meu pulso quando a angústia me fazia importar com os momentos, e com o tempo, e com o relógio, que então, justo quando sua existência era devidamente lembrada, mais apertava meu já apertado pulso, mais obstruía minha já obstruída existência. E então me livrei do tempo.

Não, não, só me livrei do relógio, não me livrei do tempo. Ainda que a tentação de confundir ambos seja grande, essa vontade de substancializar o tempo, poder pegá-lo em mãos, fazê-lo andar, e parar, e andar, e parar, e andar, lentamente às vezes, com passos estrondosos em outras, como uma marionete, e eu tivesse em uma das mãos uma corda para puxar os minutos, outra para puxar as horas, outra para os dias, outra para os instantes, outra para o esquecimento, outra para a angústia, outra para as minhas mãos no corpo de Tyu, outra para os braços, outra para a cintura, outra para as suas pernas, brancas, sempre um tanto avermelhadas.

O Roca enfim jogou, meteu um cavalo na lateral atacando o meu bispo. Não era nada grave, eu tinha um bispo na proteção do próprio bispo, e o único problema era ficar com o primeiro bispo preso na defensiva. Éramos os únicos na praça naquela tarde e o céu, cinza, daqueles bem cinzentos – fitei-o por um instante, tinha cor de piche aquele cinza, parecia uma rua, larga, muito larga, e aquela idéia me passou um sentimento confortável, um sentimento de solidão, de solidão fácil e confortável – aquele céu queria desabar, e deixava isso bastante claro. O Roca também sabia disso, ainda que não chegasse a olhar diretamente para o céu.

***

Comecei a notar o rosto do Roca. Estava crispado, a tez rígida, bastante rígida, os olhos concentrados com uma concentração quase mórbida, os olhos focados sobre todas as peças ao mesmo tempo, e ao mesmo tempo talvez não estivesse olhando para peça alguma, seus olhos se equilibrando entre o tudo o nada, ora pendendo para um lado, ora para o outro, ora parecendo vivos, ora parecendo mortos, e afinal, era uma linha tênue. Dei para me irritar um pouco com aquilo, com aquela visão de um Roca que parecia nada ver, nada querer, e a própria associação daquela imagem com a idéia de um Roca morto, daquela estátua de Roca, tornada monumento em uma praça vazia e quase debaixo dágua, aquilo tudo me incomodava, quase que fisicamente ainda que não chegasse a sê-lo, como se minha mente se esforçasse por sabotar meu estômago para justificar para mim mesmo a náusea que eu próprio já sentia com ou sem estômago. Pensei que poderia simplesmente me levantar, sair dali, poderia caminhar um pouco pela praça, erguer os olhos para aquele céu de chumbo, flanar com as nuvens ao invés de flanar com os humanos, para variar, e de qualquer forma era uma idéia que me agradava. E de qualquer forma o Roca provavelmente não notaria. Parecia que poderia permanecer ali, estático, por dias e dias, como se pertencesse àquele banco de pedra, como se sempre tivesse pertencido, como se o próprio movimento de Roca instantes atrás, movendo seu cavalo para atacar meu bispo, até aquele movimento parecia ter sido feito de um não-movimento, era um movimento paralisado, inconcebível, afinal, tratando-se de uma grande pedra, ainda que humana, e posto que humana, e posto que pedra.

Ao mesmo tempo, havia algo naquilo tudo que também me prendia, que me segurava àquele banco, e de tal forma que me fazia perder qualquer vontade de me levantar, como se fosse um esforço exagerado aquele de me levantar, romper com aquela mesa, deixar Roca ali parado. Claro, eu teria de me explicar depois, isso é fato, o Roca invariavelmente ficaria chateado, e conhecendo o Roca era capaz de ficar sem falar comigo por semanas e semanas a fio. E em geral eu preferia evitar esse tipo de problema, principalmente depois do episódio do aniversário do Roca, e principalmente depois do banho que deram no Roca, de roupa e tudo, na própria piscina, da própria casa. Não seria eu quem iria atiçar o seu temperamento de novo, certamente que não. Mas havia algo mais, maior do que qualquer medo de romper com regras de conduta social, maior do que o episódio da piscina, Roca saindo encharcado, bufando e espirrando ao mesmo tempo, maior do que o meu próprio peso sobre a Terra, e que talvez fosse até a somatória de tudo isso junto, mas que ainda assim fazia algo maior, diferente. Uma espécie de alegria me contagiava por dentro, uma quase alegria, mais letargia do que alegria, uma sensação de que tudo estava bem como estava, e de que as coisas, mais do que em qualquer outro momento da minha vida recente, estavam todas em seus devidos lugares, e que qualquer movimento em falso, qualquer tentativa de ajeitar a bunda dormente naquele banco duro, qualquer gota de chuva que enfim se desprendesse, e enfim se arremessasse, e enfim se espatifasse, contra mim, contra a mesa, estaria também contra essa alegria do mundo que eu – ao menos era o que parecia – parecia ter encontrado. E isso não podia, não deveria acontecer.

Roca tinha um rosto um tanto cinzento e que naquele momento já parecia se confundir com o céu. Parei meu olhar sobre o Roca. Tanto o Roca quanto o céu se pareciam de alguma forma com tempestades, e era sim pelo cinza que os recobria, sem dúvida, mas também não era só pelo cinza. Parecia que era Roca que podia chover a qualquer momento, e não o céu, ou talvez ambos, ao mesmo tempo, realizando uma proeza, uma perfeita sincronia entre ser humano e cosmos, quem sabe. Notei-lhe a barba sólida, não tão densa, até razoavelmente rala, alguns diriam que mal cuidada, mas ainda assim, sólida. Tinha uma dessas aparências de homem sobre quem se pode dizer que parece ser sujo e elegante ao mesmo tempo, maltrapilho e garboso, ou alguma outra dessas estranhas dualidades que por alguma razão parecem bem caber a alguns homens. Meus olhos agora conseguiam descansar confortáveis naquele rosto petrificado, sem vida do Roca, sem paisagem que lhe servisse de plano de fundo, sem uma brisa que batesse em meus olhos e me acordasse, ou que passasse pelo Roca, pelos compridos cabelos encaracolados do Roca, e lhe dessem vida novamente, como que lhe tirando de um sono profundo, perturbando um momento sagrado, there are some holy moments and there are some moments that are not holy, right? Right, Caveh, right. Talvez fosse isso afinal, essa alegria, essa letargia que me tomava, que me prendia ao banco de pedra da praça, meus olhos se vidravam no nariz sarcástico e cinzento do Roca e eu vivia um momento sagrado. Mas como eu poderia ter sido tomado assim, de súbito, por esse momento? O que havia naquilo tudo, naquela cena patética e exageradamente longa, para torná-la um momento sagrado? Não havia nada. Eu parado, o Roca parado, a mesa de xadrez, parada, meu bispo, parado, se defendendo do cavalo, parado, uma pequena praça no meio de uma quadra residencial, parada, parada, e vazia. Parecia que o Roca ia dizer alguma coisa.

Não disse. E talvez fosse mesmo isso, esse silêncio monstruoso de existências o que tornava sagrado aquele momento, e que me preenchia por dentro de alguma forma, algo como um orgasmo em formação, paralisado antes do êxtase, durante o êxtase, naquele exato momento em que o orgasmo ainda não é orgasmo, em que a idéia ainda não é idéia, aquele momento entre a surpresa com a visão deslumbrante de um pôr-do-sol inesperado e a sua consciência que imediatamente sabota a paisagem com a sua própria experiência, como se a lembrança de outros sóis que se puseram, de outras garotas de saia curta correndo descalças pelo calçadão, das pernas vermelhas de Tyu, como se a lembrança da repetição, ainda que da fração de segundo anterior, transformasse todas as frações de segundo subseqüentes em uma espécie de quase-experiência, sub-experiência, em que o momento já não é mais do que uma espécie de pomposa ferramenta – cronoalicate, ou momento de fenda, me diria o Roca, se falasse – de reprodução tosca de um instante original, autêntico, que já passou. Tão rapidamente que mal se fez notar. Mal existiu. Em toda a sua grandiosidade, os grandes momentos afinal, mal existem. Como quando fui com Tyu caminhar pela praça da reitoria, pelos corredores bem jardinados que circundam a área privilegiadamente romântica da reitoria, desde que os casais que por lá se aventurassem se prestassem ao exercício de abstração da presença pesada, burocrática, daquele odor de fotocopiadoras e de ácaros que a reitoria exalava. Lembro de quanto nos sentamos em um gramado, e devemos ter conversado sobre qualquer coisa antes que eu falasse algo sobre minha paixão por Tyu, meu coração palpitante por Tyu naquele momento, debaixo de palmeiras troncudas, cercado pela grama bem feita como raramente se via pelos pátios universitários, sob um céu que muito queria trovejar, de um dia que muito queria se acabar, de uma Tyu que não sabia o que dizer e que tinha que dizer algo, logo, que tudo ao nosso redor parecia ter pressa, como se tudo, esse tudo inventado pela mente em momentos mais conspiratórios – tudo é muito confuso, tudo é muito confuso, me dizia Tyu, Tyu com as pernas enroladas no lençol –, como se tudo tivesse para onde ir, para onde correr – talvez tudo para Tyu fosse uma espécie de cosmologia, uma noção holística de amor que fazia com que tudo pudesse se confundir, se misturar com nós dois, como se tudo nos causasse. E contra tudo, parecendo ter tomado alguma decisão, nem que fosse a decisão de que não saberia que decisão tomar, não naquele momento, a cabeça de Tyu resignou-se ao meu ombro. Sim, talvez aquilo tenha sido um momento sagrado, Caveh. Aquela sensação do calor súbito do rosto de Tyu sobre o meu ombro, os cabelos de Tyu se balançando contra o meu rosto. Aquilo era sagrado. But who can live that way?, me perguntaria o Caveh com seu entusiasmo pessimista de sempre. A cabeça de Tyu começou a pesar. O vento frio me deixava desconfortável. O silêncio de Tyu começou a ficar longo demais. Os trovões não respeitavam nosso silêncio reverente – reverente ou medroso, perguntaria o Roca, reverente ou medroso. Tudo estava contra nós Tyu, tudo.

Mas agora meus olhos estavam presos aos olhos de Roca, depositados em Roca, nos olhos claros de Roca, quase cinzas, quase brancos, quase transparentes de Roca. Aquela sensação de alegria que me contagiava por dentro, aquele orgasmo que me acometia parecia agora começar a me sufocar, me doía, me dificultava a entrada de ar. Tentei puxar o ar para dentro com toda a força, mas o ar não veio, como se também estivesse preguiçosamente, letargicamente descansado em seu próprio banco de pedra, em sua própria partida de xadrez, defendendo o seu próprio bispo, sabe-se lá de qual cavalo. Desisti do ar. Senti que já não me importava mais tanto com o momento, sagrado ou não, e que agora simplesmente esperava, esperava por alguma coisa. Comecei a pensar, enquanto esperava, naquilo que havia pensado em relação a Tyu. Que talvez essa coisa de silêncio reverente – reverente ou medroso, me repetiria o Roca, podia quase ouvi-lo – talvez não fosse nem reverente nem medroso, ou talvez até fosse, um pouco dos dois, mas a questão não era essa. A questão era que talvez se pudesse inverter um pouco a ordem das coisas, não era a reverência que criava o silêncio, mas o silêncio que criava as reverências, e portanto, também a sacralidade, das coisas, dos momentos. De tudo. Em outras palavras, o sagrado poderia ser simplesmente aquilo perante o qual não sabemos, nem temos, o que dizer. Acontece quando uma coisa é maior do que quaisquer palavras que passem pela nossa mente (comecei a achar a idéia um tanto ingênua nesse ponto, estou prestes a afrontar os sagrados alheios, quase abortei o pensamento, acabei seguindo por curiosidade, o importante não são as idéias, o importante é ver para onde as idéias vão, os fins justificam os meios, ao contrário do que acontece no mundo real, na práxis, onde as coisas são mais irreversíveis do que no mundo das idéias; pense cinco mil vezes antes de falar, cinco mil vezes), mas poderia ser também quando nossas palavras são fracas demais para que valha a pena que preencham o momento, ou ainda, que diante de um momento gigantesco, tenhamos palavras ainda maiores e que não possam ser caladas, e que o momento tenha que reverenciar nossas palavras. E se for assim, muitos dos que foram momentos sagrados poderiam tê-lo sido – e isso se perceberia após uma detalhada revisão das sacralidades de um passado recente – somente pela falta de habilidade com as palavras de uma platéia que se calou perante este tão aparentemente notável momento. Talvez eu simplesmente tenha ficado sem saber o que dizer quando Tyu deixou sua cabeça pender sobre meu ombro, mas então ao invés de me sentir simplesmente embaraçado pelo nervoso silêncio que me tomava a voz, tomei o silêncio como um ato de submissão àquele momento, àquele instante que se mostrava maior, muito maior, do que eu mesmo.

Agora estava parado, inerte a olhar o Roca, e isso que o Roca até agora há pouco me provocava náuseas. Agora me provocava essa estranha plenitude, e agora novamente já era plenitude e náusea ao mesmo tempo, pensei que talvez ainda estivesse sufocando, talvez devesse mesmo me levantar, ainda precisava de ar, ainda precisava de ar, ar, ar, ar, ar. Mas algo em mim não se importava muito com isso. Algo em mim se deixava sufocar.

Talvez seja isso mesmo Caveh, talvez o momento sagrado seja mesmo desistência, uma preguiçosa desistência perante tudo. Tudo, e tudo é tudo mesmo, o ar mas não só o ar, o chão mas não só o chão, o bispo mas não só o bispo, e só restava a gravidade, o banco de pedra que coincidentemente teve de arcar com essa desistência, os olhos do Roca, que estavam lá, simplesmente, estavam lá. Dexistência. Na realidade, agora que digo isso tudo, já não me parece que o Roca esteja lá. No lugar do Roca vejo no máximo uma silhueta esbranquiçada, confusa, indefinida, uma espécie de mancha pesada sobre o banco de pedra a minha frente. Tento forçar os olhos, como se pudesse penetrar, perfurar a realidade, essa cortina estranhamente branca que me esconde o Roca, sei que o Roca está ali, sempre esteve. Me senti tomado por uma angústia gigantesca, me sentia esvaziando, o momento se esvaziava, não somente o Roca, não, não somente. Tentei resgatar o Roca, a imagem do Roca na memória, talvez pensando que poderia transportá-lo diretamente, como em um transplante de imagens, de mim para o não-mim, esse estranho exorcismo da memória. Mas a imagem de Roca já não se formava nitidamente em minha mente, se desmanchava, e parecia se desmanchar mais quanto mais eu tentava lembrar, como se eu mesmo sabotasse a memória do Roca, sabotasse a imagem do Roca, a minha frente, esfregando na realidade meu próprio esquecimento. E não era só o Roca que desaparecia. A praça era toda tomada por uma grande e estranha neblina. O cinza que antes dominava as cores da paisagem com pequenas perturbações cromáticas – a bicicleta azul encostada no poste de luz, parecia abandonada propositalmente, quase uma pichação naquele cinza tão consistente – agora dava lugar a um branco decidido, uniforme, e que tomava praticamente tudo, os prédios, o gramado, o Roca, a bicicleta azul, o poste de luz, o Roca. E Tyu? Tyu eu ainda conseguia ver. Via nitidamente, seus lábios finos e secos, seu nariz delicadamente protuberante, suas quase-rugas que ainda a deixavam jovem. Tyu era tudo o que eu via. Pensei que talvez sequer estivesse vendo Roca, mesmo antes. Era isso minha alegria, era aquele sentimento de ausência, Roca não estava lá, nem Roca, nem ninguém, nada se movia, não havia vida, por isso o êxtase, por isso o momento, sagrado. Tudo estava vazio, e esse vazio que se formava era confortável, excessivamente confortável. Já não era mais êxtase o que eu sentia. Nem náuseas. Tyu agora era minha única possibilidade de existência, e ainda assim existia agora somente dentro de mim, Tyu, os dedos afinados e tortuosos de Tyu. E poderia continuar assim, ad infinitum, bem acolhido por esta aconchegante cegueira branca, esse branco-Tyu monocromático que minha retina inventava, brincava com ele, fazia gradações. O bispo ainda se defendia do cavalo, auxiliado pelo outro bispo que se posicionava por trás. E isso também poderia ter continuado assim, e estaria tudo bem. Não fosse minha curiosidade. Não sei em relação a quê.

Quase por reflexo, tirei dali o bispo, ameaçando um peão do Roca que até então avançava impunemente pelo tabuleiro. Imediatamente, pude ouvir um estrondo de trovão. O céu era de um cinza roxo, inchado por dentro, e que se arrebentou sem piedade sobre toda a praça, sobre mim, sobre o tabuleiro, e o Roca, que de qualquer forma pareceu não dar muita importância à coisa. Uma criança veio correndo em nossa direção em uma bicicleta azul movendo-se a toda velocidade, e era a única coisa que contrastava com o cinza roxo do céu naquele momento.

(*) Oitavo capítulo para livro, ainda que o sétimo e o sexto ainda insistam em permanecer sem expressão escrita. Primeira vez, aliás, que escrevo qualquer coisa em um ano. E pode ter dado errado. Não tive coragem de conferir, wntão, quem for ler, que sirva de cobaia.