30.7.07

A culpa, a preguiça, a pressa e o pé


Engatei a marcha à ré do carro mais ou menos no mesmo instante em que ele se aproximou, provavelmente porque seu passo para frente era meu olho cada vez mais fixo no retrovisor. Queria me obcecar pelo retrovisor mas não conseguia, então parei para olhar em seus olhos, bom, quase em seus olhos, um pouco mais para o lado inferior esquerdo dos seus olhos, entre o nariz e parte do lábio superior. E foi minha primeira derrota do dia. Quando os olhos têm medo, pulam de cima de um precipício e se fecham de vez em pálpebra corrida. Mas quando são covardes, esses só descem um ou dois degraus e se fingem de olhos abertos. Ali, entre o nariz e parte do lábio superior.

E nem foi por muito tempo. Só o suficiente para que soubéssemos um do outro. É curioso que precisemos de uma fração de segundo de olho para sabermos do outro. Achava que só precisávamos de um olho inteiro.

Disse-me com a fluência de uma palma de mão aberta que queria dinheiro. Bom, não sei dizer a bem da verdade se era uma palma de mão aberta ou uma camisa rasgada e uma barba mal-feita já que meus olhos desviaram tanto para não bater em nenhum pedaço de constrangimento no meio do caminho que acho que acabava não olhando para pedaço algum. Quando os olhos colidem com pedaços de constrangimento, eles amassam a igualdade. Ou o que tenta se parecer com ela, como pedestre que buzina ou poeta que tem ouvidos. Mas que queria dinheiro, não nessas palavras, queria.

Não sabia se dava. Nessas horas, sempre me perco na trifurcação confusa da culpa, da preguiça e da pressa. Na pressa, deixei minha dúvida para ser resolvida enquanto pegava a carteira, para se fosse o caso. Na preguiça, a carteira já estava na minha mão, demais para ser à toa. A culpa, guardei na carteira no lugar das moedas, pra quando precisasse. Mas foi só quando abri o vidro que percebi que a igualdade já tinha se perdido por aí há muito tempo. Os muros de vidro nós só vemos quando estão na forma de cacos.

Não. Igualdade é pé. Engatei a marcha à ré de novo e foi mais ou menos no mesmo instante em que ele resolveu falar, provavelmente porque o muro para ele ainda era de vidro. Antes de ser pé, aliás, igualdade é troca. Troca de beijos por lágrimas na boca, troca dos exageros disfarçados de intimidade por provérbios disfarçados de conselhos, ou do fogo do isqueiro trocado por palavras de cigarro e fumaça de conversa. No caso, ele achou mesmo que podia trocar um punhado de moedas e de pedaços de olhos entre o nariz e parte do lábio superior que eram quase olho, por palavras. O senhor do cigarro me devolvera o fogo do isqueiro na forma de comentários sobre o programa de pós-graduação em Direito de uma universidade particular e de críticas à falta de uma filosofia jurídica séria e de respeito na academia. Achara que era demais e retornara-lhe o troco balançando a cabeça distraidamente.

O problema de se devolver em palavras é o mesmo daquele do devolver em presentes. O risco de entrarem por um ouvido e saírem desembrulhados. Ou estaríamos a trocar espetáculos e não tédio, e o fogo de artifício seria qualquer coisa. O problema é que somos diferentes demais para que nossas palavras se encaixem na geometria estranha do ouvido aleatório do outro, mas não o suficiente para que o desencaixe nos surpreenda e se transforme em fantástico mundo encantado carnavalesco.

Ele, talvez por reflexo do muro de vidro, achou que meus ouvidos tinham a forma do mesmo triângulo que as suas palavras isósceles. Vai ver tinha. Disse com um sorriso no rosto, despencando olhos em todos os pedaços de constrangimento que podia.

"Andei demais hoje. Meu pé já tá até rachado. Olha só".

Olhei, com os poucos cantos de olho que ainda restavam. "Olha só". Olhei para tudo o que ainda não tinha visto direito. O rosto moreno de sol, a barba descia o queixo e chegava quase a esbarrar na camisa quase em fiapos de um azul desbotado o suficiente para contrastar com o céu. As rugas de seco nos olhos vão lhe dar um aspecto senil um dia e vai ser antes da hora. Por enquanto, o sorriso no rosto daria a idéia de um hippie tardio, se eu tivesse licença poética e alfandegária para exportar anacronismos. "Olha só". Não, os olhos jamais olham para todos os lados. Tropeçamos em um bilhão de paisagens. A cada instante. Que tipo de estética nos faz olhar para cá ou lá? Que tipo de moral? Que remorso é suficiente para que a pressa deixe de lado a pálpebra e olhe, mais e mais, achando que pode tudo ver? Qual é a culpa que deixamos de ter achando que nada fica guardado pela sombra? Muito se esconde. Até em nós mesmos. Até o Sol tem eclipses. Quem é o olho para ficar aberto? "Olha só". Flutuei do retrovisor ao tornozelo. Nessas horas, sempre me perco na trifurcação confusa da culpa, da preguiça e da pressa.

Na pressa, achei que era igualdade. Na culpa, olhar para um pé rachado se confunde com igualdade. E talvez seja, e talvez dure um ou dois segundos como um orgasmo. E na preguiça, talvez dure até mais do que tive vontade de contar.

Mas seus olhos, não. Esses, talvez na pressa, não vi. Agora, forçando a memória, só lembro do que vi uns dois degraus abaixo. Ali, como um covarde, entre o nariz e parte do lábio superior.

12.7.07

Galhos de tempo


Recebi a notícia.

Lembro que uma vez, durante uma aula, me falaram a idéia dos arquétipos, esses rabiscos de pessoas no qual podemos encaixar toda a humanidade. Costumo dizer que é o papel do intelectual esse de reduzir as grandes pedras do mundo a pedregulhos. Nas grandes pedras, se tropeça. Já os pedregulhos, esses nós os jogamos nos lagos e poças de água que acontecem de esbarrar com nossos olhares ansiosos por espetáculos. Como bons gozadores que somos, tropeçamos os lagos nos pedregulhos e rimos com seus círculos de água. Por alguns instantes, eles nos fazem acreditar no infinito. Mas dura pouco.

Se a água parada é o tédio, a onda é o fantástico. Daí os pedregulhos.

Para o intelectual, o pedregulho é aquilo que ele pode levantar. É a pedra que estava no meio do caminho mas que ele pode pegar com a ponta dos dedos e, com olhar de voyeur, observar as marcas daquilo que ela derrubou. Seres humanos, formigas ou lagos.

Não se pode estudar uma pedra sem nela tropeçar. Estudar a pedra que está no meio do caminho é ter uma pedra no meio do caminho. Intelectuais não costumam gostar da realidade. Preferem o mundo dos interruptores. Apaga-se a luz para que se acendam os arquétipos. É a saída do cientista, do filósofo e da mente distraída para o medo do fantástico que é também o medo do tédio. Para quê servem as grandes pedras do mundo quando podemos tropeçar nos pedregulhos da nossa mente?

Dizem que toda história contada, por mais torta ou gaguejada que seja, é um prédio de palavras que só pode ser construído - e, porque não, derrubado - com as mãos de oito pessoas. Minto, pessoas não, pedregulhos. Quer dizer, arquétipos. É necessário um Herói para levantar o prédio. Uma Sombra que o cegue. Um Mentor que o faça enxergar sem olhos. Um Arauto para lembrá-lo que entre cada tijolo, existe um cimento repleto de acaso e que o prédio está sujeito a cada ventania que passa. Ou que deixa de passar.

Quero falar do Arauto. O Arauto é o invasor do normal. Arromba portas de casas e de mentes. Para cadeiras, mesas, papéis e idéias, o vendaval é o mesmo. Ou pior. Não é o mesmo. O Arauto é, afinal, o homem que de tanto respirar, deixou de conformar com a idéia de ser mera fábrica de brisas. Passou a soprar. Cansado de levantar as mesmas folhas, começou a caminhar. Viaja o mundo com seus sopros. Vê graça naquilo que vôa sem saber voar. É o que o diverte. Outros preferem trotes telefônicos.

Posto de outra forma. O Arauto é aquele que conta noticias.

Eu estava sentado, estado daquele que não se conforma com o balançar constante e incerto que é o estar de pé. A sala se encontrava repleta de objetos estáticos, ocupados de nada além do seu próprio silêncio peculiar. Meu olhar estava perdido em algum ponto fixo do cenário e eu, em uma de minhas asserções sempre arriscadas a trombarem-se com as vírgulas alheias, estava prestes a admitir que se poderia viver muito bem dentro de um único e impensado quadrado aleatório de olhar. Vivia a glória de ser Deus de um único ponto.

É interessante perceber que ser Deus está acima da curiosidade de se olhar para o lado. Olhar para o lado é perder o controle. O que é o mesmo que descobrir que algo no mundo ainda pode te surpreender. Há dragões depois do ponto.

E foi sentado que recebi a notícia. Não sabia se havia entrado pelo vão da janela ou pela brecha de minhas pálpebras entreabertas, de modo que avancei rapidamente em direção de ambas para fechá-las. A notícia continuava ali, condenando-me a confundir minha ordem das coisas com a coisa bagunçada do que não é meu. Penso que foi algo parecido com o que acontece quando moscas desavisadas passam por cima dos muros que erguemos como trincheiras em uma guerra contra o acaso. Pois que é isso que faz a mosca. Lança granadas de falta de controle sobre nossos projetos arquitetônicos de bagunça planejada. Voa distraidamente e derruba distração na nossa necessidade olhar para algum lugar. Fixo. Forjando nossa onisciência.

Até a chegada da próxima mosca.

Eu, atordoado com a arrogância da invasão que não bate portas, comecei a andar. Saí pelas ruas, tomando banho de sol, chuva e de acaso. Trazia no bolso a notícia, que ainda tinha dificuldades para se acomodar com
as poltronas difíceis do resto do meu mundo de notícias velhas de revistas do ano passado. Via de um lado da calçada uma mulher, já em seus cinqüenta anos, que carregava nas mãos seus sacos de compras. Caminhava com dificuldade e não percebia que um dos potes de conserva que trazia, mal acomodado, flertava com o chão a cada passo. Do outro lado da rua, uma jovem estava sentada com o olhar de quem olha para o tempo esperado mais do que para o espaço. O olhar passava intacto pelos carros que o atropelava cruelmente a cada segundo. As mãos partiam galhos de árvores caídos, partindo com eles alguns galhos de tempo.

Quanto mais galhos de tempo você quebra, mais você se aproxima de um mundo incerto e sem galhos. Se ela pudesse, quebraria o futuro. Quem não tem o futuro, usa galhos. Com algum esforço, você pode até disfarçá-los de solução.

Continuei andando, e o chão me levou ao encontro de um pedregulho que comecei a chutar, sem pensar. Arrastei-o comigo por diversos quarteirões. Só parei quando cheguei no futuro.