20.2.07

Sobre rock, jabotis e casacos vermelhos


Às vezes acho que nosso cérebro é um grande álbum de fotografias. Mas não falo de memórias de amigos ou familiares. Falo de fotos da pessoa aleatória, dessas com que trombamos nos deslizes do dia-a-dia. Ao longo da vida, colecionamos pessoas, rostos, gestos e personalidades e, de tal forma, que os tratamos como se estivessem intrinsecamente relacionados. Criamos um laço quase inquebrável entre a memória e o novo que irrompe a todo instante a nossa frente, como que na esperança de que o tempo, ou seja, o futuro, não fosse mais do que repetição. E na realidade, a memória não é mais do que isso. A esperança da repetição.
Quando encontrei-me com a garota do casaco vermelho e botas marrons, meu cérebro não poupou esforços para transformá-la em redundância dos meus vários passados. Transformou sua saia jeans em repetição da personagem do filme da semana passada, e fez de sua voz, que oscilava graciosamente de palavra em palavra, a voz de uma garota que não cheguei a conhecer na quinta série do colégio, pois que, na época, eu ainda estava sem palavras.
Mas o mais belo era o casaco vermelho, que eu não sabia de que passado vinha. Era dessas coisas que simplesmente fazem sentido, e nossa preguiça não costuma fazer questão de vasculhar a poeira dos nossos cérebros em busca de significados com cheiro de mofo. Simplesmente deixa as coisas fazerem sentido. Aliás, viram sentido de si próprias. O casaco vermelho me lembrava do casaco vermelho, e isso o tornava ainda mais mágico.
Olhei para ela várias vezes, inicialmente para vê-la. Depois, para ser visto. Era uma garota desconhecida de casaco vermelho em um show de música em plena noite de segunda-feira, e tudo o que tínhamos em comum não era mais do que fabricação dos frankensteins de restos de lembrança morta que eram as minhas memórias. Costurava pedaços de pessoas em minha mente, e tentava conversar com esses pedaços em meu cérebro, como se pudesse assim conhecê-la dentro de mim antes de conhecê-la do lado de fora.
E assim nos conhecemos. Profundamente. Conversamos por horas, sobre rock e jabotis, granadas e quintais de casa. Conheci cada gesto, cada cara e toda resposta inesperada que ela dava para cada pergunta burocrática que eu pudesse fazer. Daí minha surpresa ao vê-la bruscamente chamada ao palco. Ameaçou sentar-se em uma cadeira mas, com um violão preso ao pescoço, se sentiu incomodada e preferiu ficar de pé. Ainda teve que tirar o casaco vermelho antes de cantar com a voz daquela garota da quinta série do colégio que eu não cheguei a conhecer.
Voltou depois de cinco músicas e quase esbarrou em mim indo para o bar. Olhei para ela e fiz menção de chamá-la como se fosse um absurdo não cumprimentá-la afetuosamente, como amigos ou amantes de longa data. Interrompi-me. Não a conhecia e tinha que fingir que não a conhecia.
Pensei em ir embora sem mais palavras. Subi as escadas que davam para a saída, mas voltei com todas as palavras na ponta da língua, e que teriam sido lançadas ao ar, se não fossem dissolvidas antes pela saliva. Pela saliva, ou pelo garoto alto, com barba malfeita que conversava com a garota do casaco vermelho em frente ao bar. Ou talvez fosse pela música ingenuamente alegre da banda que subia agora ao palco, e que eu desafinava com minha tragédia fora de contexto. Voltei a subir as escadas.
Algumas semanas depois, me encantei com uma moça que tocava violão em uma festa de formatura. Ela vestia um casaco vermelho, e me lembrava vagamente de alguém. Alguém que não tocava violão. Simplesmente conversava comigo, sobre rock e jabotis.

17.2.07

Os cacos de vidro


Eu saía do teatro quando ele deixou o gorro cair. É estranho, mesmo após alguns meses em terras canadenses, ainda não acredito que eu possa falar inglês. Ao menos, não de forma improvisada. Frações de segundo se passam para que meu cérebro possa ensaiar um monossilábico "sir!", enquanto eu apontava para o gorro com o dedo indicador em uma linguagem que transbordava qualquer idéia de universal.
Ele agradeceu. Perguntou-me sobre um trecho do final da peça, que ele não tinha entendido bem.
Uma vez escrevi sobre a comunicação com estranhos. O silêncio das multidões é como uma vidraça. Alguns tem coragem de jogar-lhe pedras. Recebem de volta cacos de vidro e de berros que tentam lhes indicar sua loucura.
A vidraça é, de fato, a pressuposição da loucura universal. Pairando sobre o mundo em meu pára-quedas imaginário, visualizo um aglomerado gigantesco de formigas andando nas pontas dos pés e amordaçadas pelas bocas para que elas não derramem palavras em seus espasmos involuntários. Todas esperam por passaportes que permitam o trânsito legal entre as fronteiras do eu para o outro. Mas são também muros de Berlim de si próprios.
Sim, a vidraça é a pressuposição da loucura universal. Ao menos, até que seja cometido o primeiro ato de sanidade.
Provavelmente essa é a condição ontológica do estrangeiro. Um eterno primeiro ato de sanidade.
Tornei-me são a partir do momento em que peguei o gorro no chão. O monossilábico "sir!" retirou-me do manicômio das multidões. Ele agora me perguntava sobre o trecho final da peça.
Respondi que também não havia entendido. Rimos como irmãos de berço e nos cumprimentamos como se ainda fôssemos nos ver.
Minutos depois, entro em um ônibus e um homem comenta comigo sobre um anúncio de propaganda, estampado sobre uma das janelas. Na realidade, não comentou comigo. Jogou palavras no ar, esperando que eu pegasse, como se fosse um gorro que caía. Dei-lhe uma resposta monossilábica e deixei as palavras no chão. Tomei o cuidado de não pisar nos cacos de vidro enquanto me mudava para outro assento.

12.2.07

O gato de olhos azuis


Já era fim de tarde, daquelas tardes em que as famílias se reúnem após os longos almoços de domingo, quando eles me convidaram a entrar. A casa era de um casal de amigos da família, já de meia idade e uma filha adolescente. Eu visitava como se cumprisse ordens. Não sei de quem.
Algumas relações parecem se sustentar por redundância. Aliás, não por redundância. Por precaução. Via a vida como um prédio em construção e aquela família parecia ser parte fundamental da pilastra central de sua própria arquitetura, apesar de nunca ter sido capaz de entender bem como. Agiam como tijolos, e parecia natural que agissem como tijolos. Pedaços de pedra não se questionam.
Sim, entrei na casa, e entrei esbarrando em uma ou duas paredes como se fossem três ou quatro. O corredor estreito que dava para a sala se tornava ainda mais estreito com as decorações que se dependuravam por toda a casa, de modo que andava como se não pudesse. Os pés faziam o chão ranger, e não lembrava de ter ouvido o ranger do chão quando eles entraram. Jamais um chão pisoteado havia celebrado tamanha glória contra um pisoteador. Qualquer pisoteador. O chão era uma bota, e me esmagava.
Mas não era para tanto. A tragédia do eu era um belo romance ainda a ser escrito e eu gostava de imaginar seu prefácio nas horas vagas, entre um corredor e uma sala.
Sentei no sofá da sala com o leve desconforto de uma almofada branca acolchoada enquanto trocava palavras já esquecidas com o casal que se sentava na minha frente como se ouvisse. Teria me esquecido dos minutos seguintes do encontro também, não fosse a filha vinda do porão com um gato nas mãos. Gato recém-acordado, diga-se de passagem, e que talvez se assustasse mais com a presença estranha na casa não fosse o absurdo de se perceber transportado, antes que o tempo pudesse fabricar um instante, de um sonho incalculável para dois braços que faziam da paisagem fantoches enquanto o carregavam rapidamente até o tapete branco no meio da sala. Senti por ele, pois sabia que havia sido retirado de seu sono por minha causa. Aproximei-me para tentar agradá-lo, e percebi seus olhos peculiarmente azuis, observação que devo ter metralhado em voz alta sob a forma de vocábulos.
Atenta às minhas aleatoriedades, a garota que me trouxe o gato voltou ao porão. Retornou segundos depois. — Os gatos de olhos azuis tem olhos pouco azuis quando acordam, disse me mostrando fotos do gato, ali com olhos ainda mais brilhantes. Acho que ainda folheava as fotos nas mãos quando minha mente, pouco confortável na almofada branca acolchoada, resolveu descer os degraus até o porão sem se preocupar em consultar o meu corpo. Voltou sem calcular o tempo que levou, trazendo nos bolsos os degraus do porão. Eram nove, mas poderiam ser onze ou doze, que se multiplicavam por duas idas e duas voltas para somarem trinta-e-seis degraus que se subiam e se desciam. E estranhamente, por minha causa.
Olhei em seus olhos e percebi que não eram azuis. Eram de uma cor que eu ainda não tinha visto, pois havia me esforçado durante o almoço para não agredi-la com meus olhares. Geralmente, falava com ela as palavras que os silêncios desconfortáveis me pediam para falar, e se não a olhava nos olhos, era simplesmente porque não achei que podia. Agora, pensando, não sei bem explicar. Indiferença, medo, pudor, polidez, são palavras que são significado de si próprias, mas pouco mais do que isso. Acho que não olhei em seus olhos antes por achar que seus olhos seriam frágeis demais, em seus quinze anos nublados, para tolerarem a agressão de serem vistos. Ser visto é tornar-se o mundo do outro. É a fração de instante em que um impera sobre os sentidos do outro. Tudo isso me fazia sentido desde que não fosse pensado. Distraído, não pensava. Então não olhava.
Ela mesma havia falado pouco até então. Falava agora dos olhos azuis do gato como se não houvesse mais do que falar. E talvez de fato não houvesse, no pequeno dicionário de palavras que se forma entre duas pessoas tão distantes, mas que olham de tão perto nos olhos da outra. A ponto de ver um gato de olhos azuis.
Não me lembro do que falamos depois, e fui embora com um terço de olhar pela janela do carro. O gato provavelmente voltou a dormir depois de uns nove degraus.

10.2.07

Um filme sem chão


Esqueci que eu deveria escrever alguns textos curtos de vez em quando. Pra não criar expectativas de que eu vá escrever longos contos todos os dias.
Saio agora de um filme, como sempre. Me senti desconfortável com a história, pois não se definia. As cenas de suspense eram subitamente interrompidas por lances de comédia, com piadas que culminavam em cenas de suspense. A idéia central nunca era definida. Era uma crítica às drogas e ao totalitarismo do governo norte-americano, mas também falava de múltiplas identidades, ou não falava de nada. Era como a descrição de um lugar-nenhum e eu não sabia como me portar perante o lugar nenhum.
Meu saco de juízos de valor parecia estar bagunçado. As pessoas em geral vêem nos dramas a possibilidade de exibirem suas posturas morais, como manequins da religião na vitrine da existência. Eu já não tinha mais postura. Eu poderia dizer o profano ou gritar o sagrado, jamais perceberia a diferença. Procurava a poltrona confortável da moral mas tropeçava a cada passo no chão duro e frio do filme. Talvez, nem chão.
Senti-me enjoado e saí sem falar nada.

7.2.07

O genocídio diário de imagens


Estava num cinema, vendo um filme qualquer. A sala era certamente menor do que aquilo a que a majestosidade soberba de outros cinemas maiores que seus filmes lhe havia acostumado, causando uma vaga sensação de derrota pessoal a partir do momento em que entrou.
Para alguém que se acostumou a berrar para o mundo o desapego material, associando palácios à necessidade de subir-se degraus - ou, pior, degraus por onde não se pode subir, reduzindo o homem a admiração da beleza estranha das coisas que estão além do que os olhos podem ver -, este hábito foi subitamente surpreendido pela sensação de incômodo não premeditada criada pelo tamanho sutilmente errado desta sala, suficientemente estreita para que seus vários eus não pudessem deixar de notar-se uns aos outros. Deixava de ser uma multidão distraída para tornar-se uma incoerência.
Repreendeu a si mesmo de forma discreta, de modo que as vozes já um tanto irritadas de si para sua mente não fossem transportadas para sua garganta em algum tipo de espasmo comunicativo, que outros chamariam de grito. Sua amiga, que estava a seu lado, nada ouviu além dos murmúrios que ecoavam pela própria sala, em seu quase-silêncio de rio de palavras que não se importam umas com as outras. Se murmúrios fossem audíveis, seriam contraditórios. Incoerentes.
As paredes vermelhas, revestidas com um veludo listrado de preto, porém, compensavam, de certa forma, a humildade inicial da sala. Isso deu-lhe um certo conforto, ainda que efêmero, pois que percebia isso tendo a sensação de se encontrar em uma espécie de cubículo monárquico lotado demais para comportar qualquer atributo de majestade, enquanto a visão das pessoas, sentadas ao sol de quase nenhuma luz e olhando fixadamente para uma tela pálida que ainda secava a tinta do filme anterior, tudo isso criava-lhe um cenário que mais parecia fazer parte de algum estranho culto religioso. Sentou-se na poltrona razoavelmente acolchoada com a conhecida sensação de solidão daqueles que subitamente percebem que desconhecem a próxima reza a ser cantada, como pedra humana no meio do caminho avassalador dos rituais. O desconforto que sentia não era muito diferente do da criança de seis anos que se vê paralisada com o medo de morte ao se dar conta de que não conhece as regras de um corre-cotia da vida. Todos esperam que a cotia corra. Para ele, o mundo era a cotia. E ficava parado, como se correr fosse seu fracasso. Como se existir fosse seu fracasso. Na realidade, provavelmente fingia-se de morto em pleno instinto animal.
Hoje ele percebia que o incômodo não era tanto o da perda de controle sobre o instante, ou sobre o imediato, mas sim, o da sensação de que alguém poderia tê-lo avisado sobre as regras. Havia sido esquecido.
Certas imagens - como a parede branca que não se altera com o caminhar rápido do cotidiano, a pia azul clara, já velha, que tem sua beleza nostálgica negligenciada pelo sono da manhã e pelas reflexões noturnas, ou a árvore retorcida do cerrado que se confunde entre tantas e desaparece aos olhos geometricamente retos da modernidade - são imagens que nosso olhar-atrás-de-olhar captura desavisadamente, criando uma superlotação cerebral de memórias. A existência só se torna viável por meio de um genocídio diário de imagens.
Ele pensava neste cemitério de momentos e via o túmulo de sua própria imagem. Não havia sido simplesmente esquecido. Tinha sido confundido com paredes brancas e pássaros pardos. Assassinado pelo olhar distraído do mundo. Distraiu-se enfim com o apagar precipitado das luzes do cinema.

5.2.07

A pilastra que estava na frente da poesia

O metrô corria cada vez mais rápido, como que se fugisse das palavras apressadas dos dois. Duas horas de conversa jamais são suficientes quando se tenta tocar as unhas dos dedos das mãos nos pés da realidade.

Estou cada vez mais convencido de que essa troca incessante de palavras mal-distribuídas por entre gavetas de silêncio que nossa sociedade chama de 'conversa' não é mais do que um constante cuspe de partículas de realidade. Tentamos descobrir o outro. O outro tenta se revelar. Nenhum dos dois sabe como, mas todos acham que isso é possível.

Falta apenas uma única estação. As palavras se atropelam em uma tentativa última de tentarem fazer sentido. Se o leitor quer uma imagem, pense em um quebra-cabeça infinito que tem a arrogância - ou ingenuidade, sinônimos arrogantes e ingênuos demais para se admitirem - de se imaginar completo antes de um abrir e fechar de portas. Ele fala em filmes, brisas e chineses como se estivessem interligados. Ela responde com sorrisos, valores morais e olhares de lado como se fossem coisas completamente diferentes.

A porta do metrô se abre ao som da frustração de palavras que ficaram para trás. Se deslumbres de real foram vistos, serão esquecidos pelas amnésias impostas pela grande bolsa de besteiras que é o mundo que nos obriga a lembrar de métodos para o uso de maçanetas e nos faz esquecer dos métodos de fabricação de momentos.

Ele salta de um lado para o outro da porta do metrô como se precisasse de passaporte. A porta se fecha e prende consigo meio suspiro que ficou por ali, mais inspirado do que expirado. Ele dá alguns passos adiante antes de olhar para trás querendo copiar a poesia daqueles olhares de despedida que ele deve ter visto em algum filme óbvio. Seus olhos apressados, porém, acabam trombando em uma pilastra de metal que estava ali distraída. O choque poderia ter derrubado a pilastra, e com ela, todo o chão do universo. Ao invés disso, caiu a poesia, sem fazer barulho suficiente para que alguém se importasse.

2.2.07

O circo precisa de lágrimas


Ele conversava com uma amiga. Como de costume, tentava fazê-la rir com a estratégia de sempre de retirar as palavras do lugar e recolocá-las onde ninguém espera. Para ele, o riso funcionava como uma espécie de termômetro de si próprio, de modo que o silêncio do outro era como uma espécie de negação do eu.

Hoje, porém, ela ria pouco. Não sabia se ela estava entediada ou com sono. Talvez preocupada demais com assuntos mais sérios para ouvir piadas tão tolas. Ele tinha consciência do fato de que freqüentemente a falta de riso do outro não era necessariamente sua culpa. Consciência, porém, não é sinônimo de controle. Trazia consigo como herança psicológica de algum momento mais ou menos traumático da infância a sensação perene de proprietário do monopólio de culpas do mundo. Era uma esponja absorvente de erros e falhas, e se as paredes de uma conversa exibiam rachaduras, era por negligência de sua própria engenharia do eu.

Sua auto-consciência tentava transportar para ela suas coleções de angústias. Erguia em sua frente um espelho monumental, como que para nela refletir suas próprias rachaduras. Sim, sabia que o mundo não era diferente dele. Um encanamento absurdo, que vazava não se sabia aonde e aumentava diariamente a conta de água da existência. Não adiantava. A tristeza da platéia de um circo é a razão de ser do palhaço. Cria o riso como torneira da lágrima.

Mas nessa conversa não havia lágrima. Disparava a comédia como uma metralhadora e recebia não mais do que risos que para ele eram apenas automáticos, que vinham por obrigação e abafavam o sonoro ruído do tédio que estava ali em algum lugar.

Frustrado, muda o tom da conversa. Pergunta sobre o estudante de direito, com quem ele achava que ela tinha terminado o namoro. Na verdade, não haviam terminado, posto que sequer haviam começado. A incerteza a maltratava, posto que não sabia se existia alguma relação. Falava isso e lembrava o outro, o artista plástico. Esse era louco, pior que o primeiro. Lhe comprava um sorvete e se dizia apaixonado, mas no dia seguinte lhe falava da ex, e que pensava em voltar. Ela agora deixava as expectativas tomarem conta de si, deixando também o dia-atrás-de-dia frustrar cada momento antes esperado com o horror do nada que acontece a cada minuto, como que em um assassinato sistemático de instantes a sangue frio. Enfim, ela se desespera ao lembrar-se de que passava exatamente pela mesma situação a dois anos atrás. Sente-se presa como que em uma gaiola de tempo, aquário das repetições eternas. Torna-se redundância. Entra em prantos.

Em seu circo de conselhos, ele fala em viver o presente. — A frustração é dos futuristas. Os indecisos são fábricas que inundam o presente com suas chaminés de fumaça preta de dúvidas. As redundâncias são mitos criados pelos desatentos.

Ela se acalma. Ele conta uma piada. O rosto, ainda molhado de lágrimas, consegue rir, apesar do desespero ainda berrado por seus olhos. Na realidade, ria por causa do desespero. Ele era o palhaço da platéia perfeita, e sabia disso.
Duas lágrimas ainda caíram incontidas antes que ela risse da piada seguinte.